sábado, setembro 24, 2005

O CARREGADOR
por Adalberto Silva

O carregador de compras acompanhava mais uma cliente. Branca como a Nicole Kidman, cabelos lisos e castanhos, recém chegada à casa dos vinte, ela ouvia com bem-disfarçado interesse a palestra do rapaz. Este não parava de falar enquanto empurrava o carrinho cheio de gêneros de primeira necessidade. Sabia que os cerca de 300 metros entre o supermercado e a casa da moça seriam consumidos tão rápido quanto o salário mínimo que recebia todo mês. Tinha pouco tempo para impressionar a mais bela entre todas com quem dividira os passos nesses dois meses de trabalho.

Já havia carregado compras de umas trintonas malhadas, hidratadas e desimpedidas, muitas das quais o tratavam pelo nome, mas os grilhões da resignação e o medo de algo bater nos ouvidos do encarregado o impediam de articular uma paquera. Agora não, não havia perigo de demissão ou voz interior apitando um “coloque-se no seu lugar” capazes de frear sua investida contra a universitária do interior, bisneta de italianos, estudante de Enfermagem e amante de polenta. As intenções do carregador eram bem diferentes das que reservava às balzaquianas em roupas de ginástica. Ele elegeu aquela menina de short jeans desbotado, blusa de malha rosa e sandália baixa para namorada, queria tomar sorvete com ela no shopping e desfilá-la na pracinha do bairro. Só faltava ela aceitar o posto.

- Eu venho aqui direto, tem uma cliente que liga e o gerente já sabe tudo que ela compra, disse animado, recebendo em troca um sorriso cordial e um pra-cima e pra-baixo com a cabeça.

E ele falava. Falava dos colegas indolentes, da habilidade em embalar as compras, de alfaces, tomates e sorvetes de morango, da fragilidade dos ovos e do peso dos garrafões de água. Do alto da sua sabedoria de supletivo, omitiu sobre as donas-de-casa folgadas que nunca lhe davam gorjeta. E ela ouvia, sem enfado nem empolgação. Só abriu a boca para soltar o contundente “é aqui”, que soou para nosso amigo como o grito eufórico da torcida soa para o último corredor quando o primeiro termina a prova dos 200 metros rasos. Como o corredor, ele não reduziu o passo diante da derrota iminente. Continuou a prosa até o “muito obrigado”, que para ele, e ele disse isso mais tarde a um colega do trabalho, caiu como o apito final do juiz impugnando as esperanças do seu time de futebol.

Voltou para o supermercado derrotado, embora achasse que havia jogado bem e só pecara nas finalizações.

- Ela me deu o maior mole, rapaz, cê tinha que ver!, gabou-se ao amigo, com quem esperava o ônibus das 22h30.
2:08 AM

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