sábado, abril 17, 2004
DESPERDÍCIO
por João do Papel
Desculpem porque estive sem inspiração. Nunca o Adalberto postou tantas vezes sem que eu sentasse à máquina para escrever uma linha. Mas disse para mim mesmo que de hoje não passa.
O que fiz então? Peguei um texto meu de cinco anos atrás, um moleque pretensioso mas cheio de boas intenções -- e referências. Se gastasse mais tempo repensando os caminhos que me trouxeram até este texto (reproduzido aqui abaixo), talvez escrevesse uma coisa realmente boa. Só que o cansaço me impede. Levem-no como saiu, quando contava 17 anos.
O leitor gosta de rever fotos antigas de outras pessoas? Pois faz muito bem. É encantador olhar e rir da decadência de figuras que ignoramos sentimentalmente, e imaginar que aquelas vidas... esperem. Fique sabendo que não estou aqui para instrui-lo com estas impressões, nem acho que seria honesto de minha parte fazê-lo; estou dizendo que gosto de ver fotos antigas. Não se importe com meus métodos. Apenas respeite os retratados e previna-se contra comentários negativos, porque as... espere. Estou a falar de fotos de família, não me entenda por mal; fotos ruins tiradas por fotógrafos pretensiosos, burros. Voltando aos comentários: não os faça. Comente apenas amenidades pelos que já se foram, e ataque a idiotice dos retratos silenciosamente; mas lembre-se de apreciar o ridículo gostoso da vida -- por "ridículo gostoso da vida" entenda o fato de saber-se idiota amanhã, embora você se sinta bacana hoje. Os anos 80 estão aí para provar isso. Quem não gostaria de queimar todas as fotos das festas famíliares entre 1979 e 1988?
por João do Papel
Desculpem porque estive sem inspiração. Nunca o Adalberto postou tantas vezes sem que eu sentasse à máquina para escrever uma linha. Mas disse para mim mesmo que de hoje não passa.
O que fiz então? Peguei um texto meu de cinco anos atrás, um moleque pretensioso mas cheio de boas intenções -- e referências. Se gastasse mais tempo repensando os caminhos que me trouxeram até este texto (reproduzido aqui abaixo), talvez escrevesse uma coisa realmente boa. Só que o cansaço me impede. Levem-no como saiu, quando contava 17 anos.
O leitor gosta de rever fotos antigas de outras pessoas? Pois faz muito bem. É encantador olhar e rir da decadência de figuras que ignoramos sentimentalmente, e imaginar que aquelas vidas... esperem. Fique sabendo que não estou aqui para instrui-lo com estas impressões, nem acho que seria honesto de minha parte fazê-lo; estou dizendo que gosto de ver fotos antigas. Não se importe com meus métodos. Apenas respeite os retratados e previna-se contra comentários negativos, porque as... espere. Estou a falar de fotos de família, não me entenda por mal; fotos ruins tiradas por fotógrafos pretensiosos, burros. Voltando aos comentários: não os faça. Comente apenas amenidades pelos que já se foram, e ataque a idiotice dos retratos silenciosamente; mas lembre-se de apreciar o ridículo gostoso da vida -- por "ridículo gostoso da vida" entenda o fato de saber-se idiota amanhã, embora você se sinta bacana hoje. Os anos 80 estão aí para provar isso. Quem não gostaria de queimar todas as fotos das festas famíliares entre 1979 e 1988?
12:30 AM
sexta-feira, abril 16, 2004
TORNOZELO TORCIDO
por Adalberto Silva
Se há um fundamento do futebol que me fascina é o chute de três dedos, conhecido também por trivela. Para os leigos no sublime esporte (respeito-os, mas não muito), trata-se do chute disparado com os três primeiros dedos do pé, contando a partir do mindinho. O movimento da perna faz com que a bola gire em torno do próprio eixo e descreva uma curva ao longo da trajetória. Leigos, vejam o gol do Branco na semifinal da Copa de 94, contra a seleção holandesa, e saberão o que é uma autêntica trivela.
Amante incorrigível do futebol, eu caio de joelhos por uma jogada bonita, seja um drible do elástico (como os do Rivellino), um lençol, um cabeceio certeiro contra o gol e até um desarme preciso, sem falta. Às vezes, terminada a partida do time do qual sou fã, saio satisfeito pelo lance esplêndido e nem me lembro do placar desfavorável.
Mas nada como uma trivela bem dada. Não falo do petardo devastador e sim do passe colocado, da bola lançada de 30 metros de distância a cair como pluma no peito do atacante. É uma verdadeira obra de arte, e como tal, só pode ser executada pelos melhores do ofício. Trivela não é para perna de pau.
Ignorei este corolário e fui me engraçar a chutar de três dedos. Eu estava na beira de um campo, atrás do gol, observando a pelada que corria. De repente a bola veio linha de fundo afora, forte e rasteira em minha direção. Pensei em bater de chapa, mas fui esnobe e meti uma trivela de primeira. Só que o chute saiu mascado, meio de peito de pé, e acabei machucado. Na hora, pulei de dor e xinguei o mundo, amaldiçoei a política econômica do Palocci, a jornalista rameira que não me quis, os mercenários do meu Fluminense. Daquele dia em diante me tornei dependente de Gelol.
Aprendi a lição e agora só faço o que realmente sei, embora ande a transgredir as normas gramaticais aqui no Tamarindo.
por Adalberto Silva
Se há um fundamento do futebol que me fascina é o chute de três dedos, conhecido também por trivela. Para os leigos no sublime esporte (respeito-os, mas não muito), trata-se do chute disparado com os três primeiros dedos do pé, contando a partir do mindinho. O movimento da perna faz com que a bola gire em torno do próprio eixo e descreva uma curva ao longo da trajetória. Leigos, vejam o gol do Branco na semifinal da Copa de 94, contra a seleção holandesa, e saberão o que é uma autêntica trivela.
Amante incorrigível do futebol, eu caio de joelhos por uma jogada bonita, seja um drible do elástico (como os do Rivellino), um lençol, um cabeceio certeiro contra o gol e até um desarme preciso, sem falta. Às vezes, terminada a partida do time do qual sou fã, saio satisfeito pelo lance esplêndido e nem me lembro do placar desfavorável.
Mas nada como uma trivela bem dada. Não falo do petardo devastador e sim do passe colocado, da bola lançada de 30 metros de distância a cair como pluma no peito do atacante. É uma verdadeira obra de arte, e como tal, só pode ser executada pelos melhores do ofício. Trivela não é para perna de pau.
Ignorei este corolário e fui me engraçar a chutar de três dedos. Eu estava na beira de um campo, atrás do gol, observando a pelada que corria. De repente a bola veio linha de fundo afora, forte e rasteira em minha direção. Pensei em bater de chapa, mas fui esnobe e meti uma trivela de primeira. Só que o chute saiu mascado, meio de peito de pé, e acabei machucado. Na hora, pulei de dor e xinguei o mundo, amaldiçoei a política econômica do Palocci, a jornalista rameira que não me quis, os mercenários do meu Fluminense. Daquele dia em diante me tornei dependente de Gelol.
Aprendi a lição e agora só faço o que realmente sei, embora ande a transgredir as normas gramaticais aqui no Tamarindo.
10:59 PM
quarta-feira, abril 14, 2004
E-MAIL BANAL
por Adalberto Silva
Fala João,
Muito oportuno o e-mail que você me enviou, com o prólogo à edição brasileira do novo livro de Michael Moore. Li a mensagem todinha, a despeito da prosa ruim. Você bem sabe, o autor só se identifica lá pela segunda metade do texto. No início pensei que fosse mais um daqueles e-mails conspiratórios e esquerdistas que às vezes caem na minha caixa postal. Rapaz, eu iria ficar puto com você!
Michael Moore invejou Bush e disparou contra o próprio pé. Algumas fontes lúcidas afirmaram, com as devidas provas, que a invasão do Iraque favoreceu os democratas dos EUA. Como se sabe, a guerra gera recessão e aumenta o déficit público. Cada bomba que explode no deserto equivale, literalmente, a milhões de dólares incinerados. É dinheiro queimado, meu amigo. Os lucros com a exploração do petróleo iraquiano virão, mas ninguém sabe ao certo quando. Mais seguro seria investir nos poços pacíficos do Casaquistão e outros tãos da Ásia. George W. Bush não vai ser reeleito, ainda mais agora, com o clima de guerra civil a pairar no Iraque.
A ruína do Michael Moore está no seu próprio livro. Coitado, ele nem percebeu. Pena que pouca gente vai perceber. Há tempos eu não via tanta besteira escrita junta, tantas inverdades e simplificações grosseiras. Dizer que a família real portuguesa veio pra cá atraída pelas nossas belezas mostra que ele é um americano típico, ignorante da história do resto do mundo. O queridinho da américa liberal e progressista ignora que os portugueses só aportaram no Rio de Janeiro porque estavam com as bundas espetadas pelas baionetas das tropas de Napoleão.
João, ele diz que nosso país é lindo e maravilhoso. Poderíamos convidá-lo a morar em algum bairro da periferia da nossa cidade, encarar o Transcol lotado, o calor tropical sem ar condicionado, os pedintes nas ruas, o povo nada cordial, as enchentes e desabamentos, a tensão de viver num dos Estados mais violentos do país. Ele recusaria o nosso convite.
Michael Moore habita provavelmente uma casa confortável. Deve ter um belo carrão. E nunca foi vítima de seqüestro relâmpago (essa modalidade de crime é exclusividade nossa, vamos patenteá-la!!!!), nunca foi acordado por balas traçantes cortando os céus ou humilhado por policiais.
Cara, quando vejo o discurso dele me dá vontade de partir para os EUA e virar um stupid black man. Limpar privada e receber mais que um jornalista aqui no Brasil.
O diretor de “Tiros em Columbine” conclui o texto pedindo que nós, brasileiros, continuemos com o carnaval pelado. Espertalhão ele. Lucra uma grana cuspindo no prato em que come para depois gastar os dólares com turismo sexual nos trópicos.
João, valeu pelo e-mail, valeu mesmo. Um abraço.
por Adalberto Silva
Fala João,
Muito oportuno o e-mail que você me enviou, com o prólogo à edição brasileira do novo livro de Michael Moore. Li a mensagem todinha, a despeito da prosa ruim. Você bem sabe, o autor só se identifica lá pela segunda metade do texto. No início pensei que fosse mais um daqueles e-mails conspiratórios e esquerdistas que às vezes caem na minha caixa postal. Rapaz, eu iria ficar puto com você!
Michael Moore invejou Bush e disparou contra o próprio pé. Algumas fontes lúcidas afirmaram, com as devidas provas, que a invasão do Iraque favoreceu os democratas dos EUA. Como se sabe, a guerra gera recessão e aumenta o déficit público. Cada bomba que explode no deserto equivale, literalmente, a milhões de dólares incinerados. É dinheiro queimado, meu amigo. Os lucros com a exploração do petróleo iraquiano virão, mas ninguém sabe ao certo quando. Mais seguro seria investir nos poços pacíficos do Casaquistão e outros tãos da Ásia. George W. Bush não vai ser reeleito, ainda mais agora, com o clima de guerra civil a pairar no Iraque.
A ruína do Michael Moore está no seu próprio livro. Coitado, ele nem percebeu. Pena que pouca gente vai perceber. Há tempos eu não via tanta besteira escrita junta, tantas inverdades e simplificações grosseiras. Dizer que a família real portuguesa veio pra cá atraída pelas nossas belezas mostra que ele é um americano típico, ignorante da história do resto do mundo. O queridinho da américa liberal e progressista ignora que os portugueses só aportaram no Rio de Janeiro porque estavam com as bundas espetadas pelas baionetas das tropas de Napoleão.
João, ele diz que nosso país é lindo e maravilhoso. Poderíamos convidá-lo a morar em algum bairro da periferia da nossa cidade, encarar o Transcol lotado, o calor tropical sem ar condicionado, os pedintes nas ruas, o povo nada cordial, as enchentes e desabamentos, a tensão de viver num dos Estados mais violentos do país. Ele recusaria o nosso convite.
Michael Moore habita provavelmente uma casa confortável. Deve ter um belo carrão. E nunca foi vítima de seqüestro relâmpago (essa modalidade de crime é exclusividade nossa, vamos patenteá-la!!!!), nunca foi acordado por balas traçantes cortando os céus ou humilhado por policiais.
Cara, quando vejo o discurso dele me dá vontade de partir para os EUA e virar um stupid black man. Limpar privada e receber mais que um jornalista aqui no Brasil.
O diretor de “Tiros em Columbine” conclui o texto pedindo que nós, brasileiros, continuemos com o carnaval pelado. Espertalhão ele. Lucra uma grana cuspindo no prato em que come para depois gastar os dólares com turismo sexual nos trópicos.
João, valeu pelo e-mail, valeu mesmo. Um abraço.
11:55 PM
segunda-feira, abril 12, 2004
VERGONHA
por Adalberto Silva
O piloto de jato perambula pela livraria do aeroporto. Quer um exemplar do Pequeno Príncipe mas está meio acanhado, com vergonha de pedir o livro desonrado pelas malditas misses. Como se a vendedora solícita fosse capaz de adivinhar que aquele livro é mesmo para o trintão de bigodes, e não presente para um dos seus dois filhos.
Ele se lembra da facilidade ao comprar o DVD do filme que o fez querer voar, a história de um piloto perdido no deserto e um menininho que dizia ser príncipe. Filme com Gene Wilder no papel da raposa e deslumbrantes cenas de desenho animado misturadas a atores reais. Comprou pela internet, sem ter que encarar vendedores ou dar explicações inexatas.
Chega a ser engraçado como este homem feito, acostumado a comandar um avião gigantesco com algumas dezenas de vidas em suas mãos, treme ao tentar comprar o livro de cabeceira. Mas ele precisa compra-lo agora. Não pode fazer isso mais tarde, impessoalmente, pela web. Quer o livro neste instante, a edição clássica, de capa branca, com as famosas aquarelas de Exupéry. Está angustiado por ainda não ter esse livro em casa. Sente-se um traidor, um ingrato para com seu herói, o piloto escritor desaparecido em pleno vôo.
Respira fundo, toma coragem e compra o livro. Antes de pagar, porém, pede à vendedora que embrulhe para presente.
por Adalberto Silva
O piloto de jato perambula pela livraria do aeroporto. Quer um exemplar do Pequeno Príncipe mas está meio acanhado, com vergonha de pedir o livro desonrado pelas malditas misses. Como se a vendedora solícita fosse capaz de adivinhar que aquele livro é mesmo para o trintão de bigodes, e não presente para um dos seus dois filhos.
Ele se lembra da facilidade ao comprar o DVD do filme que o fez querer voar, a história de um piloto perdido no deserto e um menininho que dizia ser príncipe. Filme com Gene Wilder no papel da raposa e deslumbrantes cenas de desenho animado misturadas a atores reais. Comprou pela internet, sem ter que encarar vendedores ou dar explicações inexatas.
Chega a ser engraçado como este homem feito, acostumado a comandar um avião gigantesco com algumas dezenas de vidas em suas mãos, treme ao tentar comprar o livro de cabeceira. Mas ele precisa compra-lo agora. Não pode fazer isso mais tarde, impessoalmente, pela web. Quer o livro neste instante, a edição clássica, de capa branca, com as famosas aquarelas de Exupéry. Está angustiado por ainda não ter esse livro em casa. Sente-se um traidor, um ingrato para com seu herói, o piloto escritor desaparecido em pleno vôo.
Respira fundo, toma coragem e compra o livro. Antes de pagar, porém, pede à vendedora que embrulhe para presente.
10:08 PM
GIORNI
por João do Papel
Que lindo esse céu. Nos floreios de cada nuvenzinha, beijada de amarelo gema de ovo caipira. Se você estivesse aqui, eu ia cantar alguma coisa, mas fiquei mudo. Essa mangueira aqui na frente, ela era muito florida, agora não, caíram as flores, e, ah!, eu não entendo de mangueira. Nem de jamelão, sendo que tinha um pezão lindo na frente da minha primeira casa. Eu tinha medo dele, tão grande, a copa batia no terceiro andar; mas sempre amei jamelão, e nunca soube quando era a época.
Essas cores são lindas, estão ficando mais lindas, mas vão morrer de repente. O dia vai embora, puff, foi. Peraí que ainda tem luz bonita na árvore. A mangueira não tem fruta, mas está aqui, firme. Eu gosto de confiar na mangueira. Ela espera, espera. Sabe, às vezes a gente tem que confiar. Acreditar, ser crente. E olha que funciona. Eu já estive mais cansado, mas o que multiplica o cansaço é o medo, e eu estou com menos medo que antes.
Pronto, acabou, agora sim. Acabou o dia, instalou-se o breu; o vapor de sódio (ou mercúrio, acho) acendeu, o frio agora perdeu seu maior opositor, o sol foi fazer dia para lá do horizonte.
por João do Papel
Que lindo esse céu. Nos floreios de cada nuvenzinha, beijada de amarelo gema de ovo caipira. Se você estivesse aqui, eu ia cantar alguma coisa, mas fiquei mudo. Essa mangueira aqui na frente, ela era muito florida, agora não, caíram as flores, e, ah!, eu não entendo de mangueira. Nem de jamelão, sendo que tinha um pezão lindo na frente da minha primeira casa. Eu tinha medo dele, tão grande, a copa batia no terceiro andar; mas sempre amei jamelão, e nunca soube quando era a época.
Essas cores são lindas, estão ficando mais lindas, mas vão morrer de repente. O dia vai embora, puff, foi. Peraí que ainda tem luz bonita na árvore. A mangueira não tem fruta, mas está aqui, firme. Eu gosto de confiar na mangueira. Ela espera, espera. Sabe, às vezes a gente tem que confiar. Acreditar, ser crente. E olha que funciona. Eu já estive mais cansado, mas o que multiplica o cansaço é o medo, e eu estou com menos medo que antes.
Pronto, acabou, agora sim. Acabou o dia, instalou-se o breu; o vapor de sódio (ou mercúrio, acho) acendeu, o frio agora perdeu seu maior opositor, o sol foi fazer dia para lá do horizonte.
4:29 PM
domingo, abril 11, 2004
QUADRADO AO QUADRADO
por João do Papel
Ele era tão certinho que procurou não viver a própria vida, com medo de incomodar os vizinhos. Era de uma normalidade sobrenatural, assustadora, infalível. Tinha aproximadamente quatrocentas palavras no vocabulário, todas de raízes comuns, geométricas. Quadrado, bola, sorvete, cachorro, cobrar, pagar. Foi o mais conformado dentre os covardes, e não teve ninguém que chorasse no dia de seu enterro, apesar do sol e do vento agradável.
Desde muito molecote trouxe na cabeça a vontade de agradar a todas as pessoas e o medo de acentuar palavras com mais de três sílabas. Tinha pavor do ônibus que tomava para casa, porque o último motorista dirigia sem a carteira do tipo necessário para veículos pesados. Não podia crer no desprendimento daquele homem. Se isso era possível, o que não seria? Sinceramente, era incapaz de perceber as nuances entre ter e não ter uma carteira do tipo certo. Não acreditava que uma pessoa sem carteira pudesse dirigir; tivesse a capacidade. Simplesmente achava que o motor não ligaria, que o carro não funcionaria. Se acontecesse, repare no grifo, se acontecesse de alguém sem carteira sentar na cadeira do motorista com pensamento de rodar com o carro, a mão divina da Providência interromperia o ato. Ele ainda hoje duvida que o homem não tinha habilitação para o ônibus. Preferiu acreditar que aquele não era um veículo pesado, mas um carro do tipo conciliável com a carteira do ex-motorista.
Enfim, era tão absolutamente preto-no-branco que transcendia o bom senso. Por exemplo, toda vez que chegava perto de um CD player tocando no modo "random" ou "shuffle", a ordem das músicas trocava da aleatória para a normal. Uma coisa impossível, todo mundo sabe. Ao invés de misturar, embaralhar, pegar faixas aleatórias, o sistema computadorizado do CD player tocava as faixas na ordem original, estabelecida, impressa na fibra. Esse truque assustava as pessoas. Assustou a mim diversas vezes. Outras coisas aconteceram, mas não cabe aqui recontar. Tranqulizem, vou remeter a pauta ao Fantástico. Fiquem ligados que um dia ele aparecerá, um homem do Rá que não é falcatrua. É tão certinho que parece personagem de piada; aquele carcereiro que tinha certeza absoluta na volta do prisioneiro, que foi à padaria comprar cigarro, porque emprestou a ele uma nota grande e tem troco. É por aí.
por João do Papel
Ele era tão certinho que procurou não viver a própria vida, com medo de incomodar os vizinhos. Era de uma normalidade sobrenatural, assustadora, infalível. Tinha aproximadamente quatrocentas palavras no vocabulário, todas de raízes comuns, geométricas. Quadrado, bola, sorvete, cachorro, cobrar, pagar. Foi o mais conformado dentre os covardes, e não teve ninguém que chorasse no dia de seu enterro, apesar do sol e do vento agradável.
Desde muito molecote trouxe na cabeça a vontade de agradar a todas as pessoas e o medo de acentuar palavras com mais de três sílabas. Tinha pavor do ônibus que tomava para casa, porque o último motorista dirigia sem a carteira do tipo necessário para veículos pesados. Não podia crer no desprendimento daquele homem. Se isso era possível, o que não seria? Sinceramente, era incapaz de perceber as nuances entre ter e não ter uma carteira do tipo certo. Não acreditava que uma pessoa sem carteira pudesse dirigir; tivesse a capacidade. Simplesmente achava que o motor não ligaria, que o carro não funcionaria. Se acontecesse, repare no grifo, se acontecesse de alguém sem carteira sentar na cadeira do motorista com pensamento de rodar com o carro, a mão divina da Providência interromperia o ato. Ele ainda hoje duvida que o homem não tinha habilitação para o ônibus. Preferiu acreditar que aquele não era um veículo pesado, mas um carro do tipo conciliável com a carteira do ex-motorista.
Enfim, era tão absolutamente preto-no-branco que transcendia o bom senso. Por exemplo, toda vez que chegava perto de um CD player tocando no modo "random" ou "shuffle", a ordem das músicas trocava da aleatória para a normal. Uma coisa impossível, todo mundo sabe. Ao invés de misturar, embaralhar, pegar faixas aleatórias, o sistema computadorizado do CD player tocava as faixas na ordem original, estabelecida, impressa na fibra. Esse truque assustava as pessoas. Assustou a mim diversas vezes. Outras coisas aconteceram, mas não cabe aqui recontar. Tranqulizem, vou remeter a pauta ao Fantástico. Fiquem ligados que um dia ele aparecerá, um homem do Rá que não é falcatrua. É tão certinho que parece personagem de piada; aquele carcereiro que tinha certeza absoluta na volta do prisioneiro, que foi à padaria comprar cigarro, porque emprestou a ele uma nota grande e tem troco. É por aí.
4:21 AM