sábado, abril 10, 2004
MOCASSIM MANCHADO DE VERMELHO
por Adalberto Silva
Ele está perturbado. Passou a manhã inteira sentado em frente ao computador. Finge trabalhar. Seus óculos de armação dourada refletem uma planilha de excell. A tensão é tanta que ele nem consegue se distrair na internet, como os indolentes do escritório.
“Hoje eu acabo com a vagabunda”, pensa, enquanto batuca o mouse pad, olhos fixos no monitor.
Hora do almoço. Ele ainda conserva a aparência perfeita do começo do expediente. Nem o mais perspicaz dos detetives de cinema veria o amargor escondido naquele homem de camisa verde-clara, calça grafite, aristocrática pasta de couro e sapato mocassim meio gasto, a destoar da elegância corporativa do conjunto.
Sai do escritório discretamente, como de costume. Mas hoje ele não vai comer o frango grelhado com arroz branco no restaurante de sempre, sozinho, como faz diariamente há três anos. Não vai tomar uma coca-cola, pagar a conta sem olhar para a atendente e depois ir ao banco, ou ao barbeiro, ou à livraria do shopping folhear manuais de administração. Quebrará a rotina, sacrificará a segurança de um horário de almoço previsível por um acerto de contas conjugal.
No carro, lembra do começo do namoro, nos tempos da faculdade. Amor retilíneo, sossegado, estável como os índices da caderneta de poupança, nascido entre calculadoras hp, rodízios de pizza e sessões de cinemão americano. Consolidado pela entrada do casal no programa de trainee, ele na financeira e ela na siderúrgica, pela troca da pizza por carpaccio, da bic pela mont-blanc. Lembra dos planos a dois: a viagem a Cancun, o MBA, o escritório de consultoria.
“Cadela!”, deixa escapar, enquanto acelera, com a prudência típica dos analistas de crédito, o motor 1.0 do automóvel francês.
Ele sabe que ela sempre almoça em casa. Não gosta da comida servida na empresa. Acha indigesta.
Dirige cautelosamente, sem arestas, buzinas, distrações. Parece um autômato. Ou um personagem de propaganda de banco. Na pasta, acomodada no bando do passageiro, as provas do adultério e o revólver calibre 38 registrado.
Um amigo alertou, há quase um ano. Ele não acreditou, rompeu com o amigo. Indignado, o amigo tratou de provar a verdade. Nem foi difícil. Bastou freqüentar a boate com câmera digital. Enquadrava fulana, fulano, um casal qualquer e pegava, ao fundo, ela e o outro. Mandou as provas por e-mail e pôde dormir em paz.
O carro pára em frente ao prédio. Conhecido do porteiro, ele entra sem avisar. Pega o elevador e aperta o três. Sobe e dá de cara com os dois, sorridentes.
“Cheguei na hora, cadela”.
A arma na mão. O cano preto e robusto de seis polegadas contrasta com os braços finos e transparentes do algoz. Ele puxa o gatilho uma vez, ela é atingida no pescoço e cai na poça vermelha. Aponta para o outro, que assustado não se move.
“É bem mais jovem e bonito que nas fotos. Um molecote”, reflete, antes de esvaziar o tambor.
Ele caminha devagar, na mão esquerda a pasta importada, na direita o revólver ainda fumegante. Orgulhoso dos seis primeiros disparos de sua vida, não percebe que pisou no sangue da ex-amada. Os mocassins manchados de vermelho deixam pegadas no chão de granito.
Os vizinhos abrem as portas em pânico. Ela definha, sente sede e frio. O primo já morto. O rapaz, coitado, foi deixar um currículo com a prima e ganhou cinco balaços. E o matador nem headhunter era.
por Adalberto Silva
Ele está perturbado. Passou a manhã inteira sentado em frente ao computador. Finge trabalhar. Seus óculos de armação dourada refletem uma planilha de excell. A tensão é tanta que ele nem consegue se distrair na internet, como os indolentes do escritório.
“Hoje eu acabo com a vagabunda”, pensa, enquanto batuca o mouse pad, olhos fixos no monitor.
Hora do almoço. Ele ainda conserva a aparência perfeita do começo do expediente. Nem o mais perspicaz dos detetives de cinema veria o amargor escondido naquele homem de camisa verde-clara, calça grafite, aristocrática pasta de couro e sapato mocassim meio gasto, a destoar da elegância corporativa do conjunto.
Sai do escritório discretamente, como de costume. Mas hoje ele não vai comer o frango grelhado com arroz branco no restaurante de sempre, sozinho, como faz diariamente há três anos. Não vai tomar uma coca-cola, pagar a conta sem olhar para a atendente e depois ir ao banco, ou ao barbeiro, ou à livraria do shopping folhear manuais de administração. Quebrará a rotina, sacrificará a segurança de um horário de almoço previsível por um acerto de contas conjugal.
No carro, lembra do começo do namoro, nos tempos da faculdade. Amor retilíneo, sossegado, estável como os índices da caderneta de poupança, nascido entre calculadoras hp, rodízios de pizza e sessões de cinemão americano. Consolidado pela entrada do casal no programa de trainee, ele na financeira e ela na siderúrgica, pela troca da pizza por carpaccio, da bic pela mont-blanc. Lembra dos planos a dois: a viagem a Cancun, o MBA, o escritório de consultoria.
“Cadela!”, deixa escapar, enquanto acelera, com a prudência típica dos analistas de crédito, o motor 1.0 do automóvel francês.
Ele sabe que ela sempre almoça em casa. Não gosta da comida servida na empresa. Acha indigesta.
Dirige cautelosamente, sem arestas, buzinas, distrações. Parece um autômato. Ou um personagem de propaganda de banco. Na pasta, acomodada no bando do passageiro, as provas do adultério e o revólver calibre 38 registrado.
Um amigo alertou, há quase um ano. Ele não acreditou, rompeu com o amigo. Indignado, o amigo tratou de provar a verdade. Nem foi difícil. Bastou freqüentar a boate com câmera digital. Enquadrava fulana, fulano, um casal qualquer e pegava, ao fundo, ela e o outro. Mandou as provas por e-mail e pôde dormir em paz.
O carro pára em frente ao prédio. Conhecido do porteiro, ele entra sem avisar. Pega o elevador e aperta o três. Sobe e dá de cara com os dois, sorridentes.
“Cheguei na hora, cadela”.
A arma na mão. O cano preto e robusto de seis polegadas contrasta com os braços finos e transparentes do algoz. Ele puxa o gatilho uma vez, ela é atingida no pescoço e cai na poça vermelha. Aponta para o outro, que assustado não se move.
“É bem mais jovem e bonito que nas fotos. Um molecote”, reflete, antes de esvaziar o tambor.
Ele caminha devagar, na mão esquerda a pasta importada, na direita o revólver ainda fumegante. Orgulhoso dos seis primeiros disparos de sua vida, não percebe que pisou no sangue da ex-amada. Os mocassins manchados de vermelho deixam pegadas no chão de granito.
Os vizinhos abrem as portas em pânico. Ela definha, sente sede e frio. O primo já morto. O rapaz, coitado, foi deixar um currículo com a prima e ganhou cinco balaços. E o matador nem headhunter era.
10:14 PM
sexta-feira, abril 09, 2004
LENTAMENTE. . .
por João do Papel
A noite não dormi, então o dia ficou insuportável como uma quaresma modorrenta, a tarde longa e etérea, daquelas que terminam e começam a cada pensamento e duram três vezes mais que no relógio. A impressão perfeita era que ela nunca passaria, a tarde, então procurei o sono. Sonhei com quartos vazios e folhas em branco. Acordei encharcado naquele torpor que sai da cabeça e espanta o coração.
Consegui lucidez apenas enquanto ouvia as notas agudas do videogame portátil da geração passada, estridentes como um pio de coruja. A imagem da coruja perseguiu meus pensamentos e não relaxei mais, as cortinas dos olhos emperradas e perigosamente pendentes, qualquer acidente poderia fazê-las fechar para sempre, e então aprendi que nunca mais relaxaria se entendesse aquilo que estava no ar, uma quase imagem, uma frase, o som do vento passando debaixo de uma ponte, a cor da garapa na feira de sábado, o musgo forte e coeso do muro da minha escola de criança, as primeiras notas daquela fita velha do John Lennon, o olhar do meu avô desconhecido no retrato velho, as páginas desniveladas da broxura ensebada; algo grande e vistoso como as portas do paraíso, transcedental como o milagre de um poste de luz num vilarejo rural; algo muito perigoso, um pensamento denso e rústico. Talvez, se entendi alguma coisa, a certeza de que estou no caminho certo. E muito cansado.
por João do Papel
A noite não dormi, então o dia ficou insuportável como uma quaresma modorrenta, a tarde longa e etérea, daquelas que terminam e começam a cada pensamento e duram três vezes mais que no relógio. A impressão perfeita era que ela nunca passaria, a tarde, então procurei o sono. Sonhei com quartos vazios e folhas em branco. Acordei encharcado naquele torpor que sai da cabeça e espanta o coração.
Consegui lucidez apenas enquanto ouvia as notas agudas do videogame portátil da geração passada, estridentes como um pio de coruja. A imagem da coruja perseguiu meus pensamentos e não relaxei mais, as cortinas dos olhos emperradas e perigosamente pendentes, qualquer acidente poderia fazê-las fechar para sempre, e então aprendi que nunca mais relaxaria se entendesse aquilo que estava no ar, uma quase imagem, uma frase, o som do vento passando debaixo de uma ponte, a cor da garapa na feira de sábado, o musgo forte e coeso do muro da minha escola de criança, as primeiras notas daquela fita velha do John Lennon, o olhar do meu avô desconhecido no retrato velho, as páginas desniveladas da broxura ensebada; algo grande e vistoso como as portas do paraíso, transcedental como o milagre de um poste de luz num vilarejo rural; algo muito perigoso, um pensamento denso e rústico. Talvez, se entendi alguma coisa, a certeza de que estou no caminho certo. E muito cansado.
2:59 AM
quarta-feira, abril 07, 2004
A MENINA DO ELEVADOR
por Adalberto Silva
Conheci a menina dos cabelos curtos em uma reunião de trabalho. Ela era a estagiária, eu, o jornalista free-lancer. O contato inicial foi pequeno, mas suficiente para que eu percebesse algo errado: aquelas roupas marrons e os sapatos caretas não combinavam com o penteado dela. Era o tipo de cabelo que – não sei bem há quanto tempo – me encanta. Cabelo cortado rente, uma preferência, admito, pouco comum.
Descemos juntos o elevador barulhento. Ela me disse, olhos no chão, que era seu primeiro dia no estágio. Estava cheia de expectativas profissionais. Preferi não tecer comentários sobre as nebulosidades do mercado.
Semanas depois nos encontramos novamente, na mesma situação. A menina tímida, de vestimentas quadradas, olhar acanhado e palavras cuidadosamente medidas, partiu para dar lugar a uma estagiária saidinha, que me chamou pelo diminutivo do meu nome. Aqueles cabelos diziam tudo.
Não me surpreendi. Sabia que ela, assim que se adaptasse ao novo emprego, iria trocar os modelitos pardos por roupas alegres, o sapato de bancária por um confortável tênis. Passaria a falar num tom de voz mais alto e com as gírias de sempre.
Ainda não sei por que, talvez nunca venha a saber, mas a verdade é que senti saudade da menina do elevador, tão frágil e esperançosa, por quem me apaixonei durante uns cinco minutos. Agora ela está cheia de autoconfiança, quem sabe já tenha até algumas decepções profissionais. Sinceramente, perdeu a graça.
por Adalberto Silva
Conheci a menina dos cabelos curtos em uma reunião de trabalho. Ela era a estagiária, eu, o jornalista free-lancer. O contato inicial foi pequeno, mas suficiente para que eu percebesse algo errado: aquelas roupas marrons e os sapatos caretas não combinavam com o penteado dela. Era o tipo de cabelo que – não sei bem há quanto tempo – me encanta. Cabelo cortado rente, uma preferência, admito, pouco comum.
Descemos juntos o elevador barulhento. Ela me disse, olhos no chão, que era seu primeiro dia no estágio. Estava cheia de expectativas profissionais. Preferi não tecer comentários sobre as nebulosidades do mercado.
Semanas depois nos encontramos novamente, na mesma situação. A menina tímida, de vestimentas quadradas, olhar acanhado e palavras cuidadosamente medidas, partiu para dar lugar a uma estagiária saidinha, que me chamou pelo diminutivo do meu nome. Aqueles cabelos diziam tudo.
Não me surpreendi. Sabia que ela, assim que se adaptasse ao novo emprego, iria trocar os modelitos pardos por roupas alegres, o sapato de bancária por um confortável tênis. Passaria a falar num tom de voz mais alto e com as gírias de sempre.
Ainda não sei por que, talvez nunca venha a saber, mas a verdade é que senti saudade da menina do elevador, tão frágil e esperançosa, por quem me apaixonei durante uns cinco minutos. Agora ela está cheia de autoconfiança, quem sabe já tenha até algumas decepções profissionais. Sinceramente, perdeu a graça.
10:59 PM
OS AMIGOS
por João do Papel
Marcaram de se encontrar no mesmo lugar das últimas noites, um clube de sinuca meio ralé. A palavra clube tem um bom hálito. Então é exagero falar em clube de sinuca, uma vez que o bar é quente e fedorento.
Abrão prometeu levar alguns discos da coleção da avó, velharias de capa desfiada. Mas o neguinho desfez o sorriso quando percebeu que os Sinatras não tocariam no moderno aparelho de som do lugar. Aquietou-se e passou a noite abraçado aos vinis, com receio de perdê-los. Sentia culpa porque um era autografado -- na década de 40 a velha fizera uma viagem aos Estados Unidos; tentaria a vida na América mas a guerra a fez voltar. Até hoje se desconsola com a idéia de que um dia viu o homem cantar, majestoso segurando o fio do microfone na mão esquerda, o chapéu de aba mole escorregando pela careca galopante aos vinte e poucos anos. A dedicatória do disco era bonitinha, "melhores desejos" como fazia quando conhecia pouco a fã. Mas assinou o nome de outra pessoa: Francis A. Sinatra. Quem é essa mulher, essa tal de Francis, sorria e perguntava a velha.
Outro dia os amigos brigaram com um representante de distribuidora de cerveja por uma conta de duas fichas. Era uma espelunca maravilhosa, um lugar onde os bons corações prosperam, porque brigaram em desvantagem -- três contra um -- e saíram inteiros, um milagre da diplomacia. Voltaram para casa andando, mas diminuidos de todas as economias.
Há, porém, questões mais urgentes. A noite que Abrão grudou nos discos do Sinata, um cachorro passou mordendo as sarnas, enquanto um gato pelado usava de graça nos movimentos para desviar de cusparadas. As paredes descascadas serviam de campo de batalha para lagartixas, mosquitos e pequenas baratas; um teatro de operações que definia espíritos. Na parte de trás, os negros mal-encarados torciam pelas lagartixas, grandes e cautelosas. Estavam loucos para arrumar confusão e degustar à pancadas o santinho que ousasse invadir seu espaço, como elas. Circulando, os bêbados tristes e sem turma; mendigavam dedos de prosa, guimbas de cigarro e doses de cana -- os mosquitos. Ao redor da mesa estavam os jogadores de sinuca. Os amigos e os aproveitadores. Esses eu não sei quem era. Mas era assim o bar. Um equilíbrio inusitado, a síntese do lugar. Fórmula testada através de anos, heróicos anos de humilhações e atos heróicos, "sangue, suor e cerveja" na voz do sambista.
por João do Papel
Marcaram de se encontrar no mesmo lugar das últimas noites, um clube de sinuca meio ralé. A palavra clube tem um bom hálito. Então é exagero falar em clube de sinuca, uma vez que o bar é quente e fedorento.
Abrão prometeu levar alguns discos da coleção da avó, velharias de capa desfiada. Mas o neguinho desfez o sorriso quando percebeu que os Sinatras não tocariam no moderno aparelho de som do lugar. Aquietou-se e passou a noite abraçado aos vinis, com receio de perdê-los. Sentia culpa porque um era autografado -- na década de 40 a velha fizera uma viagem aos Estados Unidos; tentaria a vida na América mas a guerra a fez voltar. Até hoje se desconsola com a idéia de que um dia viu o homem cantar, majestoso segurando o fio do microfone na mão esquerda, o chapéu de aba mole escorregando pela careca galopante aos vinte e poucos anos. A dedicatória do disco era bonitinha, "melhores desejos" como fazia quando conhecia pouco a fã. Mas assinou o nome de outra pessoa: Francis A. Sinatra. Quem é essa mulher, essa tal de Francis, sorria e perguntava a velha.
Outro dia os amigos brigaram com um representante de distribuidora de cerveja por uma conta de duas fichas. Era uma espelunca maravilhosa, um lugar onde os bons corações prosperam, porque brigaram em desvantagem -- três contra um -- e saíram inteiros, um milagre da diplomacia. Voltaram para casa andando, mas diminuidos de todas as economias.
Há, porém, questões mais urgentes. A noite que Abrão grudou nos discos do Sinata, um cachorro passou mordendo as sarnas, enquanto um gato pelado usava de graça nos movimentos para desviar de cusparadas. As paredes descascadas serviam de campo de batalha para lagartixas, mosquitos e pequenas baratas; um teatro de operações que definia espíritos. Na parte de trás, os negros mal-encarados torciam pelas lagartixas, grandes e cautelosas. Estavam loucos para arrumar confusão e degustar à pancadas o santinho que ousasse invadir seu espaço, como elas. Circulando, os bêbados tristes e sem turma; mendigavam dedos de prosa, guimbas de cigarro e doses de cana -- os mosquitos. Ao redor da mesa estavam os jogadores de sinuca. Os amigos e os aproveitadores. Esses eu não sei quem era. Mas era assim o bar. Um equilíbrio inusitado, a síntese do lugar. Fórmula testada através de anos, heróicos anos de humilhações e atos heróicos, "sangue, suor e cerveja" na voz do sambista.
12:20 AM
terça-feira, abril 06, 2004
PARÁGRAFO
por João do Papel
Nada vai te destruir. Apesar da loucura, nada vai te destruir. Porque és santa, e todo mundo sabe. Abençoada foste tu entre as mulheres, Ele disse. A oração veio daí. Um dia Deus olhou para baixo, para a mulher sofrendo, e rezou de pé, vigiando-a pelas falhas na nuvem. Sim, porque Deus reza para Si mesmo. Ele é humilde, não acredita nos próprios mandos, apesar de ser onipresente, potente etc. E tem o dom divino de insuflar o próprio destino, quando fica um pouco desinteressante. Eu, como muitos, queria ser Deus.
por João do Papel
Nada vai te destruir. Apesar da loucura, nada vai te destruir. Porque és santa, e todo mundo sabe. Abençoada foste tu entre as mulheres, Ele disse. A oração veio daí. Um dia Deus olhou para baixo, para a mulher sofrendo, e rezou de pé, vigiando-a pelas falhas na nuvem. Sim, porque Deus reza para Si mesmo. Ele é humilde, não acredita nos próprios mandos, apesar de ser onipresente, potente etc. E tem o dom divino de insuflar o próprio destino, quando fica um pouco desinteressante. Eu, como muitos, queria ser Deus.
7:17 PM
segunda-feira, abril 05, 2004
SOMPLACE ELSE
por João do Papel
Novamente ele, novamente eu. George Harrison é confundido como um beatle quieto. A grande imprensa convencionou chamá-lo disso, porque, durante a década de 1960, era realmente caladão. Mas pululava de vida interior, aproveitando a fama para conseguir as respostas que seu coração de menino queria.
De acordo com Derek Taylor, amigão e jornalista "oficial", George falava pelos cotovelos. Ok, mas isso não vem ao caso. O importante é que ele falava pelos dedos. Quando metia um slide no anelar, tirava os mais elegantes sons e, por que não, os mais elegantes arrepios. Essa música que tentei conciliar tradução está em CLOUD NINE, o álbum da volta do velho George, lançado em 1987 e capital para a redescoberta de sua potência e auto-estima, estilhaçada pelas resenhas de GONE TROPPO, de cinco anos antes. Cloud Nine, com muitos hits e nenhuma canção que ironizasse o showbizz (como fazia desde o final da década de 1970, num diálogo ressentido com imprensa e indústria fonográfica depois do processo de plágio por "My Sweet Lord"), foi um sucesso, embora o comentário ácido esteja presente na canção "When We Was Fab", um mea culpa para os anos de beatle. Entre o processo e aquele disco, George Harrison, por causa do cinismo, havia se tornado um homem chato a ponto de esquecer que sabia fazer hits de qualidade. Por isso o disco é tão importante: trouxe de volta para casa, para usar a expressão budista, a figura artística de George, que retornou às rádios e às entrevistas de violão em punho.
Someplace Else
(n'algum outro lugar)
Você embarcou na minha
Não sei como encontrou, mas conseguiu
Me tirou do rumo de algum outro lugar
Foi difícil falar no começo
Queria muito que você fosse minha
Mas agora entristeço como nunca
Arrependido porque vamos nos deixar
E por algum tempo você conseguiu me confortar
Me abraçava pelo tempo que fosse necessário
Mas preciso de você do meu lado agora
Enquanto meu mundo está de pernas pro ar
Solidão
Rostos vazios
Queria deixá-los todos
N'algum outro lugar
Espero que você mude de idéia
Talvez me avise antes
Que também vai ficar triste como nunca ficou
Sofrendo porque nos separamos
E por um tempinho eu poderia confortar você
E segurar sua imagem na minha cabeça
Preciso de você ao meu lado
Agora, enquanto meu mundo tem a tristeza dos loucos
Someplace Else
You got into my life
I don't know how you found me, but you did
It stopped me heading someplace else
Took me a while to say
Wish you belong to me
But now I'm saddened like I've never been
Regretting that we'll leave
And for a while you could comfort me
And hold me for some time
I need you now to be beside me
While all my world is so untidy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
(Someplace else)
I hope you won't let go
Maybe you'll let me know
That you'll be saddened like you've never been
Regretting that we'll leave
And for a while I could comfort you
And hold you in my mind
I need you now to be beside me
While all my world is sad and crazy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
And for a while you could comfort me
And hold me for some time
I need you now to be beside me
While all my world is so untidy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
por João do Papel
Novamente ele, novamente eu. George Harrison é confundido como um beatle quieto. A grande imprensa convencionou chamá-lo disso, porque, durante a década de 1960, era realmente caladão. Mas pululava de vida interior, aproveitando a fama para conseguir as respostas que seu coração de menino queria.
De acordo com Derek Taylor, amigão e jornalista "oficial", George falava pelos cotovelos. Ok, mas isso não vem ao caso. O importante é que ele falava pelos dedos. Quando metia um slide no anelar, tirava os mais elegantes sons e, por que não, os mais elegantes arrepios. Essa música que tentei conciliar tradução está em CLOUD NINE, o álbum da volta do velho George, lançado em 1987 e capital para a redescoberta de sua potência e auto-estima, estilhaçada pelas resenhas de GONE TROPPO, de cinco anos antes. Cloud Nine, com muitos hits e nenhuma canção que ironizasse o showbizz (como fazia desde o final da década de 1970, num diálogo ressentido com imprensa e indústria fonográfica depois do processo de plágio por "My Sweet Lord"), foi um sucesso, embora o comentário ácido esteja presente na canção "When We Was Fab", um mea culpa para os anos de beatle. Entre o processo e aquele disco, George Harrison, por causa do cinismo, havia se tornado um homem chato a ponto de esquecer que sabia fazer hits de qualidade. Por isso o disco é tão importante: trouxe de volta para casa, para usar a expressão budista, a figura artística de George, que retornou às rádios e às entrevistas de violão em punho.
Someplace Else
(n'algum outro lugar)
Você embarcou na minha
Não sei como encontrou, mas conseguiu
Me tirou do rumo de algum outro lugar
Foi difícil falar no começo
Queria muito que você fosse minha
Mas agora entristeço como nunca
Arrependido porque vamos nos deixar
E por algum tempo você conseguiu me confortar
Me abraçava pelo tempo que fosse necessário
Mas preciso de você do meu lado agora
Enquanto meu mundo está de pernas pro ar
Solidão
Rostos vazios
Queria deixá-los todos
N'algum outro lugar
Espero que você mude de idéia
Talvez me avise antes
Que também vai ficar triste como nunca ficou
Sofrendo porque nos separamos
E por um tempinho eu poderia confortar você
E segurar sua imagem na minha cabeça
Preciso de você ao meu lado
Agora, enquanto meu mundo tem a tristeza dos loucos
Someplace Else
You got into my life
I don't know how you found me, but you did
It stopped me heading someplace else
Took me a while to say
Wish you belong to me
But now I'm saddened like I've never been
Regretting that we'll leave
And for a while you could comfort me
And hold me for some time
I need you now to be beside me
While all my world is so untidy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
(Someplace else)
I hope you won't let go
Maybe you'll let me know
That you'll be saddened like you've never been
Regretting that we'll leave
And for a while I could comfort you
And hold you in my mind
I need you now to be beside me
While all my world is sad and crazy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
And for a while you could comfort me
And hold me for some time
I need you now to be beside me
While all my world is so untidy
Loneliness (oh-o-oh)
Empty faces (oh-o-oh)
Wish I could leave them all (o-oh)
In someplace else
7:37 PM
SÁBIO SAMUELSON
por Adalberto Silva
Estava no meu estudo diário de Economia, lendo o primeiro capítulo da parte que aborda a macroeconomia, quando fui apresentado a Thomas Crapper, inventor do vaso sanitário com descarga. O nome do encanador inglês apareceu durante uma explanação sobre o aumento da eficiência econômica com a invenção de novos produtos e processos. “Por exemplo, quando Thomas Crapper inventou a sanita interior, milhões de pessoas deixaram de defrontar-se com neve no inverno para obrar nas suas próprias habitações e, no entanto, isto aumentou o conforto apesar de nunca ser refletido no produto interno bruto”, escreveu o senhor Samuelson, Prêmio Nobel, fundador do departamento de economia do MIT e autor do livro que estudo.
Não pude deixar de rir quando me deparei com os termos “sanita interior” e “obrar”, deliciosamente oferecidos pela tradução em português lusitano, legítimo. Ri e continuei a leitura de temas agradáveis porém complexos. Terminada a lição do dia, percebi o gol de letra marcado pelo velho Samuelson. Sábio acadêmico, ele soube a hora certa de soltar uma piada e encher o sangue dos leitores com hormônios da felicidade, deixando-os com pique para as lições seguintes.
Uma vez eu estava em uma palestra, oferecida por uma grande empresa fabricante de amortecedores de automóveis, e senti pena do orador, profissional da área de marketing. Ele subiu ao palco e tirou logo o paletó, na tentativa forçada de criar um ar informal, deu boa-noite e nada. Boa-noite de novo e quase nenhum feedback, para usar um termo dele. No decorrer da apresentação soltou umas cinco piadas sem qualquer efeito hilariante.
O sósia do Rubens Ewald Filho não demonstrou abalo. Deve estar acostumado com platéias geladas. Eu fiquei com tanta pena dele que por um momento cheguei a esquecer do coquetel que seria oferecido depois, aliás, o motivo da minha presença no evento.
Talvez um dia ele descubra que piada, para causar risadas coletivas, deve tratar daqueles temas universais: homossexualismo, adultério, preconceitos diversos, perversões sexuais, escatologia.
Sr. Samulson sabe disso. Falou de cocô no meio de uma lição de macroeconomia sem perder a autoridade no assunto que o consagrou. O velhinho domina as coisas. Quando eu crescer quero ser igual a ele.
por Adalberto Silva
Estava no meu estudo diário de Economia, lendo o primeiro capítulo da parte que aborda a macroeconomia, quando fui apresentado a Thomas Crapper, inventor do vaso sanitário com descarga. O nome do encanador inglês apareceu durante uma explanação sobre o aumento da eficiência econômica com a invenção de novos produtos e processos. “Por exemplo, quando Thomas Crapper inventou a sanita interior, milhões de pessoas deixaram de defrontar-se com neve no inverno para obrar nas suas próprias habitações e, no entanto, isto aumentou o conforto apesar de nunca ser refletido no produto interno bruto”, escreveu o senhor Samuelson, Prêmio Nobel, fundador do departamento de economia do MIT e autor do livro que estudo.
Não pude deixar de rir quando me deparei com os termos “sanita interior” e “obrar”, deliciosamente oferecidos pela tradução em português lusitano, legítimo. Ri e continuei a leitura de temas agradáveis porém complexos. Terminada a lição do dia, percebi o gol de letra marcado pelo velho Samuelson. Sábio acadêmico, ele soube a hora certa de soltar uma piada e encher o sangue dos leitores com hormônios da felicidade, deixando-os com pique para as lições seguintes.
Uma vez eu estava em uma palestra, oferecida por uma grande empresa fabricante de amortecedores de automóveis, e senti pena do orador, profissional da área de marketing. Ele subiu ao palco e tirou logo o paletó, na tentativa forçada de criar um ar informal, deu boa-noite e nada. Boa-noite de novo e quase nenhum feedback, para usar um termo dele. No decorrer da apresentação soltou umas cinco piadas sem qualquer efeito hilariante.
O sósia do Rubens Ewald Filho não demonstrou abalo. Deve estar acostumado com platéias geladas. Eu fiquei com tanta pena dele que por um momento cheguei a esquecer do coquetel que seria oferecido depois, aliás, o motivo da minha presença no evento.
Talvez um dia ele descubra que piada, para causar risadas coletivas, deve tratar daqueles temas universais: homossexualismo, adultério, preconceitos diversos, perversões sexuais, escatologia.
Sr. Samulson sabe disso. Falou de cocô no meio de uma lição de macroeconomia sem perder a autoridade no assunto que o consagrou. O velhinho domina as coisas. Quando eu crescer quero ser igual a ele.
3:12 PM