sábado, março 27, 2004
AO VENCEDOR, OS TOMATES
por Adalberto Silva
Dias atrás comprei um exemplar atrasado da revista “Radar Interativo”. O número de estréia, para ser mais preciso. Paguei R$1,99 ao meu amigo jornaleiro, com quem sempre vou bater papo depois do almoço e aproveito para filar os jornais do dia.
Logo nas primeiras páginas encontrei uma matéria capenga sobre Michael Moore, um exemplo perfeito de jornalismo-marmitex, aquele praticado no intervalo das refeições, ou entre um frila e outro. Mas não escrevo para criticar a revista, faço isso outra hora. Escrevo, sim, para chutar o traseiro do cineasta e escritor queridinho da esquerda bem nutrida.
Não vou criticá-lo com argumentos racionais, que me tomariam tempo e fosfato. Prefiro economizar palavras e dizer, apenas, EU ODEIO MICHAEL MOORE.
Gostaria de desafiá-lo em uma luta de boxe sem luvas, a despeito do americano pesar mais que eu. É claro que ele não iria aceitar o desafio de um mero desconhecido latino-americano. Se eu fosse um anônimo rico e texano, herdeiro de petrodólares, representante legítimo dos w.a.s.p, aposto que ele encararia. Ou, no mínimo, alardearia o bafafá. Michael Moore é do tipo que escolhe os inimigos.
Mesmo assim eu sonho em socar aquela cara gorducha, arremessar aqueles óculos longe do ringue, nocautear o queridinho da américa esclarecida e depois ser bombardeado por tomates não transgênicos vindos da platéia.
Um desses tomates seria presente da Raphaela*, estudante de Jornalismo de uma conhecida instituição particular de Vitória. Ela parece ter lido um hipotético manual de “como ser legal e parecer uma pessoa alternativa”: tem os cabelos curtinhos, usa badulaques hippies, tem estrelinhas tatuadas pelo corpo, curte sons que ninguém conhece, dirige vídeos e culpa o neoliberalismo por todas as desgraças do país.
Conversávamos sobre “Tiros em Columbine” numa mesa de bar com mais cinco pessoas, quando ela, empolgada, pergunta a opinião do único graduado presente. Respondi que saí do cinema com vontade de fundar a Sociedade Brasileira do Rifle, embora não tenha arma em casa.
A menina fechou a cara e não falou mais comigo. Um silêncio nauseabundo baixou no recinto. Depois de breve desconforto, paguei minha conta no boteco e fui embora, certo de que tinha feito um gol.
*o nome foi trocado para preservar a identidade da moça.
por Adalberto Silva
Dias atrás comprei um exemplar atrasado da revista “Radar Interativo”. O número de estréia, para ser mais preciso. Paguei R$1,99 ao meu amigo jornaleiro, com quem sempre vou bater papo depois do almoço e aproveito para filar os jornais do dia.
Logo nas primeiras páginas encontrei uma matéria capenga sobre Michael Moore, um exemplo perfeito de jornalismo-marmitex, aquele praticado no intervalo das refeições, ou entre um frila e outro. Mas não escrevo para criticar a revista, faço isso outra hora. Escrevo, sim, para chutar o traseiro do cineasta e escritor queridinho da esquerda bem nutrida.
Não vou criticá-lo com argumentos racionais, que me tomariam tempo e fosfato. Prefiro economizar palavras e dizer, apenas, EU ODEIO MICHAEL MOORE.
Gostaria de desafiá-lo em uma luta de boxe sem luvas, a despeito do americano pesar mais que eu. É claro que ele não iria aceitar o desafio de um mero desconhecido latino-americano. Se eu fosse um anônimo rico e texano, herdeiro de petrodólares, representante legítimo dos w.a.s.p, aposto que ele encararia. Ou, no mínimo, alardearia o bafafá. Michael Moore é do tipo que escolhe os inimigos.
Mesmo assim eu sonho em socar aquela cara gorducha, arremessar aqueles óculos longe do ringue, nocautear o queridinho da américa esclarecida e depois ser bombardeado por tomates não transgênicos vindos da platéia.
Um desses tomates seria presente da Raphaela*, estudante de Jornalismo de uma conhecida instituição particular de Vitória. Ela parece ter lido um hipotético manual de “como ser legal e parecer uma pessoa alternativa”: tem os cabelos curtinhos, usa badulaques hippies, tem estrelinhas tatuadas pelo corpo, curte sons que ninguém conhece, dirige vídeos e culpa o neoliberalismo por todas as desgraças do país.
Conversávamos sobre “Tiros em Columbine” numa mesa de bar com mais cinco pessoas, quando ela, empolgada, pergunta a opinião do único graduado presente. Respondi que saí do cinema com vontade de fundar a Sociedade Brasileira do Rifle, embora não tenha arma em casa.
A menina fechou a cara e não falou mais comigo. Um silêncio nauseabundo baixou no recinto. Depois de breve desconforto, paguei minha conta no boteco e fui embora, certo de que tinha feito um gol.
*o nome foi trocado para preservar a identidade da moça.
4:02 PM
sexta-feira, março 26, 2004
O PEQUENO PILOTO
por Adalberto Silva
Com a boca seca por causa de ressaca de sono, espírito meio baqueado depois de peregrinar por três agências bancárias, vou ao computador batucar modestas palavras. Mal abro o word e corro em direção à janela, atraído pelo ruído rasante de um helicóptero militar, verde, imponente. Fico olhando pro céu durante uns cinco minutos, em busca de nova aparição da aeronave. Enquanto isso, lembro dos tempos de criancice, da época em que eu sonhava ser aviador.
Moleque comportado e estudioso, que nunca se imaginou jornalista, colecionava álbuns de figurinhas de aviões e lia, lia muito sobre o tema.
O guri cresceu um pouquinho, passou a reparar nas pernas das coleguinhas de classe, conheceu o rock’n’roll, mas não deixou de querer ultrapassar a barreira do som, cortar as nuvens a bordo de um Tucano da esquadrilha da fumaça. Dos filmes da sessão da tarde, adorava O Pequeno Príncipe, principalmente a cena em que o protagonista pilotava cantando antes de cair no deserto. Mas para os amigos, só falava de Águia de Aço e Top Gun, Trovão Azul e Águia de Fogo.
Um dia alguém lhe falou que pilotos não podem usar óculos de grau. O garoto míope, que já começava a deixar de lado seus bonecos dos Comando Em Ação, desistiu da Academia da Força Aérea. Sai de cena o pequeno aviador.
De vez em quando ele aparece por aqui. Vívido, saltitante, doido para vestir um macacão, colocar o capacete com seu apelido (Mustang, Gigante, Ulisses? Ulisses, é melhor!) escrito em fonte cursiva, entrar na cabine do supersônico e voar, voar, voar.
por Adalberto Silva
Com a boca seca por causa de ressaca de sono, espírito meio baqueado depois de peregrinar por três agências bancárias, vou ao computador batucar modestas palavras. Mal abro o word e corro em direção à janela, atraído pelo ruído rasante de um helicóptero militar, verde, imponente. Fico olhando pro céu durante uns cinco minutos, em busca de nova aparição da aeronave. Enquanto isso, lembro dos tempos de criancice, da época em que eu sonhava ser aviador.
Moleque comportado e estudioso, que nunca se imaginou jornalista, colecionava álbuns de figurinhas de aviões e lia, lia muito sobre o tema.
O guri cresceu um pouquinho, passou a reparar nas pernas das coleguinhas de classe, conheceu o rock’n’roll, mas não deixou de querer ultrapassar a barreira do som, cortar as nuvens a bordo de um Tucano da esquadrilha da fumaça. Dos filmes da sessão da tarde, adorava O Pequeno Príncipe, principalmente a cena em que o protagonista pilotava cantando antes de cair no deserto. Mas para os amigos, só falava de Águia de Aço e Top Gun, Trovão Azul e Águia de Fogo.
Um dia alguém lhe falou que pilotos não podem usar óculos de grau. O garoto míope, que já começava a deixar de lado seus bonecos dos Comando Em Ação, desistiu da Academia da Força Aérea. Sai de cena o pequeno aviador.
De vez em quando ele aparece por aqui. Vívido, saltitante, doido para vestir um macacão, colocar o capacete com seu apelido (Mustang, Gigante, Ulisses? Ulisses, é melhor!) escrito em fonte cursiva, entrar na cabine do supersônico e voar, voar, voar.
11:22 AM
quinta-feira, março 25, 2004
SOBRE "AS LOUCAS BALADAS DOS PAULISTINHAS ENDINHEIRADOS"
por João do Papel
Quem ainda não leu, mas pode ler aqui a matéria sobre a Geração $, turminha de paulistas cheios de grana, não perdeu nada. O texto, que invadiu com a impetuosidade de um ILoveYou os e-mails da classe média trabalhadora, é uma obra de ficção atestando que -- sim -- os filhos dos ricos são arrogantes e preconceituosos. Mas... onde está o confronto, marca do bom jornalismo? Porque o que essa matéria faz é reforçar um estereótipo, arrastando para a página do AOL milhares de mensagens no tom de "era isso mesmo que eu pensava deles, aqueles fdp". Essa matéria, ficção da boa, é jornalismo da pior categoria.
O New Journalism, a técnica explorada pelo autor da matéria, é uma coisa atraente. O movimento literário da década de 60, que rendeu bons livros, textos inteligentes e a imbatível criatividade da vida real, é uma mistura de apuração psicótica, uma pororoca de detalhes, prosa bem costurada, narrativa de romances psicológicos e talento. Mas deixou a credibilidade de lado. O jornalista, na sanha de impressionar, toma liberdades que vão mal com a imparcialidade. E imparcialidade é o gol supremo de qualquer diário de notícias que se leva a sério.
Como está bem dito na página de comentários do Nomínimo (aqui), a matéria versa sobre eventos que levam até o menos sensível a oscilar entre excitação e náuseas, desejo e repulsa. Isso é literatura. Para fazer isso, ele escreve com meia dúzia de preconceitos em cada bolso. A pergunta que não quer calar: o que há de diferente entre essa história que percorreu os e-mails corporativos e a bravura teatral dos comentaristas de TV em programas como "Cidade Alerta" e "Brasil Urgente"?
Da mesma forma que o Gugu foi proibido de ir ao ar por falsificar uma exclusiva com o PCC; da mesma maneira que o Ratinho atrapalhou a negociação durante o sequestro do irmão do Zezé di Camargo; da mesma maneira que o repórter do New York Times inventou mil matérias lindas e caiu do cavalo; nós, os consumidores -- classe média, classes D e E, governantes, empresários, macumbeiros, terroristas, papas, cachorros e papagaios -- somos os responsáveis. É tudo igual, e escolha nossa. Ninguém gosta de construir opiniões críticas ao redor de um assunto. A matéria do AOL, por mais inteligente que seja, é um passo para trás. A prova de que nosso gosto converge para a ficção de qualidade, custe o que custar. E -- fetiche! -- quando a obra de ficção vem com a assinatura de um jornalista diplomado, jurando que foi tudo apurado no fio da barba, o sabor é incomparável.
E pergunte se alguém quer tirar o sabor incomparável da boca.
por João do Papel
Quem ainda não leu, mas pode ler aqui a matéria sobre a Geração $, turminha de paulistas cheios de grana, não perdeu nada. O texto, que invadiu com a impetuosidade de um ILoveYou os e-mails da classe média trabalhadora, é uma obra de ficção atestando que -- sim -- os filhos dos ricos são arrogantes e preconceituosos. Mas... onde está o confronto, marca do bom jornalismo? Porque o que essa matéria faz é reforçar um estereótipo, arrastando para a página do AOL milhares de mensagens no tom de "era isso mesmo que eu pensava deles, aqueles fdp". Essa matéria, ficção da boa, é jornalismo da pior categoria.
O New Journalism, a técnica explorada pelo autor da matéria, é uma coisa atraente. O movimento literário da década de 60, que rendeu bons livros, textos inteligentes e a imbatível criatividade da vida real, é uma mistura de apuração psicótica, uma pororoca de detalhes, prosa bem costurada, narrativa de romances psicológicos e talento. Mas deixou a credibilidade de lado. O jornalista, na sanha de impressionar, toma liberdades que vão mal com a imparcialidade. E imparcialidade é o gol supremo de qualquer diário de notícias que se leva a sério.
Como está bem dito na página de comentários do Nomínimo (aqui), a matéria versa sobre eventos que levam até o menos sensível a oscilar entre excitação e náuseas, desejo e repulsa. Isso é literatura. Para fazer isso, ele escreve com meia dúzia de preconceitos em cada bolso. A pergunta que não quer calar: o que há de diferente entre essa história que percorreu os e-mails corporativos e a bravura teatral dos comentaristas de TV em programas como "Cidade Alerta" e "Brasil Urgente"?
Da mesma forma que o Gugu foi proibido de ir ao ar por falsificar uma exclusiva com o PCC; da mesma maneira que o Ratinho atrapalhou a negociação durante o sequestro do irmão do Zezé di Camargo; da mesma maneira que o repórter do New York Times inventou mil matérias lindas e caiu do cavalo; nós, os consumidores -- classe média, classes D e E, governantes, empresários, macumbeiros, terroristas, papas, cachorros e papagaios -- somos os responsáveis. É tudo igual, e escolha nossa. Ninguém gosta de construir opiniões críticas ao redor de um assunto. A matéria do AOL, por mais inteligente que seja, é um passo para trás. A prova de que nosso gosto converge para a ficção de qualidade, custe o que custar. E -- fetiche! -- quando a obra de ficção vem com a assinatura de um jornalista diplomado, jurando que foi tudo apurado no fio da barba, o sabor é incomparável.
E pergunte se alguém quer tirar o sabor incomparável da boca.
1:46 PM
BOLO DE CENOURA
por João do Papel
No corredor do meu andar senti o cheiro de bolo de cenoura. E isso já eram quinze para a meia-noite. Estranho. Quem ia mexer com bolo uma hora dessas?
Não sei se era esse o cheiro. Podia ser calda de chocolate, que é muito usada sobre os melhores bolos de cenoura. Um nariz mais bem treinado, e até por isso mais cheio de soberba, diria que, indiscutivelmente, se tratava do delicado aroma da calda de chocolate sendo despejada sobre o bolo de cenoura. Mas aí é coisa para profissional.
Imagino, com uma ponta de melancolia, que o bolo era assado no humilde lar de um migrante, como eu. E que nesta noite de quinta-feira, fria e inexpressiva, a saudade apertou tanto aquele coração que só a receita de bolo, trazida de casa, daria jeito. Vejo uma estudante delicada, muito alva, entre raladores e farinhas, batendo a massa já com princípio de desespero; depois ela senta-se em frente ao forno, olhando o bolo crescer, e uma lágrima escorre pela bochecha; por fim vem o soluço e a queimadura no dedo porque ela esqueceu de pegar a fôrma com um pano.
A estudante agora come seu bolo, toma seu leite tipo B e sonha com os dias felizes de lá para trás. Ah, como senti saudade da minha casa, no início. Mas passou, e, ei, amiga passarinha, passa, você vai ver. É o inverno, a gente tem que voar, por instinto. No verão você volta para casa, de penagem nova, vai ser legal. E depois olha para trás e dá um sorriso meio triste, porque lembra da dor. Mas também lembra que foi forte. Espero que você seja forte, porque é muito bonito ser forte. Seja forte, nem que tenha que fazer um bolo de cenoura por dia. Eu vou amar o cheiro.
por João do Papel
No corredor do meu andar senti o cheiro de bolo de cenoura. E isso já eram quinze para a meia-noite. Estranho. Quem ia mexer com bolo uma hora dessas?
Não sei se era esse o cheiro. Podia ser calda de chocolate, que é muito usada sobre os melhores bolos de cenoura. Um nariz mais bem treinado, e até por isso mais cheio de soberba, diria que, indiscutivelmente, se tratava do delicado aroma da calda de chocolate sendo despejada sobre o bolo de cenoura. Mas aí é coisa para profissional.
Imagino, com uma ponta de melancolia, que o bolo era assado no humilde lar de um migrante, como eu. E que nesta noite de quinta-feira, fria e inexpressiva, a saudade apertou tanto aquele coração que só a receita de bolo, trazida de casa, daria jeito. Vejo uma estudante delicada, muito alva, entre raladores e farinhas, batendo a massa já com princípio de desespero; depois ela senta-se em frente ao forno, olhando o bolo crescer, e uma lágrima escorre pela bochecha; por fim vem o soluço e a queimadura no dedo porque ela esqueceu de pegar a fôrma com um pano.
A estudante agora come seu bolo, toma seu leite tipo B e sonha com os dias felizes de lá para trás. Ah, como senti saudade da minha casa, no início. Mas passou, e, ei, amiga passarinha, passa, você vai ver. É o inverno, a gente tem que voar, por instinto. No verão você volta para casa, de penagem nova, vai ser legal. E depois olha para trás e dá um sorriso meio triste, porque lembra da dor. Mas também lembra que foi forte. Espero que você seja forte, porque é muito bonito ser forte. Seja forte, nem que tenha que fazer um bolo de cenoura por dia. Eu vou amar o cheiro.
1:29 AM
ADORO FEIJÃO TROPEIRO
por Adalberto Silva
Existem dois acontecimentos que eu não presenciei e pelos quais pagaria um bom trocado para ser testemunha ocular da história, como dizia o repórter esso. Não falo de fatos memoráveis da História com H maiúsculo, como o legendário gol de Pelé contra o Fluminense ou o desembarque dos comandos aliados em Omaha, e sim de dois eventos envolvendo pessoas comuns e um gênero alimentício de primeira necessidade.
O primeiro foi narrado no post “Segunda-feira ou lata de margarina”. Sem mais detalhes aqui. O segundo, ainda inédito em caracteres, me foi contado por um amigo. Esse cara exercia a função de auxiliar de balconista em uma farmácia de Jardim Camburi. O balconista sênior se chamava João, um tipo gordinho com barba estilo João Bosco, educado, bem articulado, amante de choro e água mineral com gás.
Sábado, movimento fraco, João pede ao meu amigo que vá buscar uma porção de feijão tropeiro na churrascaria ao lado. O garoto vai, estômago já se manifestando feito wah-wah de guitarra, tão solícito quanto interessado em saborear o acepipe. Retorna logo, cumbuca de isopor quente e perfumada nas mãos.
O boticário agradece e se dirige ao fundo da farmácia para deliciar-se com o sonho de consumo instantâneo. Meu amigo vai atrás, em busca da parte que lhe cabe. Os dois lavam as mãos, preparam talheres, falam asneiras, até que João surta, como tomado por entidade de candomblé. Ele dá um urro e avança violentamente contra a cumbuca. Pega o feijão com as mãos e comprime com toda força fazendo um bolinho, que engole ao mesmo tempo em que emite ruídos guturais. Repete a performance umas cinco vezes, até que só restem vestígios do tropeiro espalhados pelo chão e grudados na sua barba. Sem pronunciar palavra, bebe um copo de água, limpa a boca, o rosto, e, como se nada tivesse acontecido, diz ao amigo: “adoro feijão tropeiro”.
O trainee, assustado, até se esquece da fome despertada pelo aroma do feijãozinho. Não mastigou nada mas ganhou uma boa história para contar. Sempre conta o causo empolgado, e eu, com um tico de inveja, nunca me canso de ouvir.
por Adalberto Silva
Existem dois acontecimentos que eu não presenciei e pelos quais pagaria um bom trocado para ser testemunha ocular da história, como dizia o repórter esso. Não falo de fatos memoráveis da História com H maiúsculo, como o legendário gol de Pelé contra o Fluminense ou o desembarque dos comandos aliados em Omaha, e sim de dois eventos envolvendo pessoas comuns e um gênero alimentício de primeira necessidade.
O primeiro foi narrado no post “Segunda-feira ou lata de margarina”. Sem mais detalhes aqui. O segundo, ainda inédito em caracteres, me foi contado por um amigo. Esse cara exercia a função de auxiliar de balconista em uma farmácia de Jardim Camburi. O balconista sênior se chamava João, um tipo gordinho com barba estilo João Bosco, educado, bem articulado, amante de choro e água mineral com gás.
Sábado, movimento fraco, João pede ao meu amigo que vá buscar uma porção de feijão tropeiro na churrascaria ao lado. O garoto vai, estômago já se manifestando feito wah-wah de guitarra, tão solícito quanto interessado em saborear o acepipe. Retorna logo, cumbuca de isopor quente e perfumada nas mãos.
O boticário agradece e se dirige ao fundo da farmácia para deliciar-se com o sonho de consumo instantâneo. Meu amigo vai atrás, em busca da parte que lhe cabe. Os dois lavam as mãos, preparam talheres, falam asneiras, até que João surta, como tomado por entidade de candomblé. Ele dá um urro e avança violentamente contra a cumbuca. Pega o feijão com as mãos e comprime com toda força fazendo um bolinho, que engole ao mesmo tempo em que emite ruídos guturais. Repete a performance umas cinco vezes, até que só restem vestígios do tropeiro espalhados pelo chão e grudados na sua barba. Sem pronunciar palavra, bebe um copo de água, limpa a boca, o rosto, e, como se nada tivesse acontecido, diz ao amigo: “adoro feijão tropeiro”.
O trainee, assustado, até se esquece da fome despertada pelo aroma do feijãozinho. Não mastigou nada mas ganhou uma boa história para contar. Sempre conta o causo empolgado, e eu, com um tico de inveja, nunca me canso de ouvir.
12:34 AM
quarta-feira, março 24, 2004
CHAME O PINEL
por Adalberto Silva
Um dos destaques no noticiário da semana passada foi a prisão do biltre Sérgio Naya. Na hora em que um dos telejornais mostrava o fato, minha mãe, indignada com as façanhas do velhaco e ávida por compreender a mente criminosa de Naya, concluiu que ele não passa de um sem-vergonha. Opinião eloqüente, vide o currículo do meliante, mas sem qualquer fundamento, bradou minha mente cientificista, gerada em intermináveis leituras do Manual do Escoteiro dos Sobrinhos do Pato Donald e experimentos com um kit de química comprado nas lojas Americanas.
Meu gênio iluminista descobriu (não pergunte-me como, por favor) que Sérgio Naya, José inocêncio, a fraudadora do INSS cujo nome não me ocorre agora, Nicolau Lalau e seus pares são portadores de uma nova patologia, cujo principal sintoma é a compulsão por falcatruas, robalheiras, corrupção (ativa e/ou passiva, depende do grau da moléstia), na maioria das vezes envolvendo verbas públicas.
Os portadores da XXXXpatia (o nome da doença será escolhido em um concurso) roubam por prazer, e não para satisfazer as necessidades materiais. A prova disso é que todos eles, sem exceção, continuam nas atividades fraudulentas mesmo depois de conquistarem fortunas. O maior prazer do XXXXpata é organizar operações complicadíssimas para burlar o fisco, superfaturar licitações, sair milionário de processos de falência, entre outras tramóias.
No início dos estudos sobre o assunto, pensei que a XXXXpatia fosse uma moléstia adquirida. Desconfiei, inclusive, que o mal só acometesse bacharéis em Direito. Mais tarde vi que estava errado, porque as biografias dos corruptos estudados (não foram poucos) mostram que eles já era afeitos a falcatruas bem antes de largarem os cueiros. Sérgio Naya, por exemplo, era especialista em vender falsas rifas aos sete anos de idade. Dizem que até um conhecido malandro da Lapa, criador de golpes fantásticos, caiu na lábia do garoto.
É mais provável que a XXXXpatia seja uma doença congênita, como a psicopatia. E sem cura, porque não há caso de corrupto recuperado após tirar uma (sempre pequena) cadeia ou ter os bens (na verdade um décimo do total) bloqueados. Depois de diagnosticada a doença, o único tratamento recomendado é o isolamento do paciente em um manicômio. Sem direito a habeas corpus.
por Adalberto Silva
Um dos destaques no noticiário da semana passada foi a prisão do biltre Sérgio Naya. Na hora em que um dos telejornais mostrava o fato, minha mãe, indignada com as façanhas do velhaco e ávida por compreender a mente criminosa de Naya, concluiu que ele não passa de um sem-vergonha. Opinião eloqüente, vide o currículo do meliante, mas sem qualquer fundamento, bradou minha mente cientificista, gerada em intermináveis leituras do Manual do Escoteiro dos Sobrinhos do Pato Donald e experimentos com um kit de química comprado nas lojas Americanas.
Meu gênio iluminista descobriu (não pergunte-me como, por favor) que Sérgio Naya, José inocêncio, a fraudadora do INSS cujo nome não me ocorre agora, Nicolau Lalau e seus pares são portadores de uma nova patologia, cujo principal sintoma é a compulsão por falcatruas, robalheiras, corrupção (ativa e/ou passiva, depende do grau da moléstia), na maioria das vezes envolvendo verbas públicas.
Os portadores da XXXXpatia (o nome da doença será escolhido em um concurso) roubam por prazer, e não para satisfazer as necessidades materiais. A prova disso é que todos eles, sem exceção, continuam nas atividades fraudulentas mesmo depois de conquistarem fortunas. O maior prazer do XXXXpata é organizar operações complicadíssimas para burlar o fisco, superfaturar licitações, sair milionário de processos de falência, entre outras tramóias.
No início dos estudos sobre o assunto, pensei que a XXXXpatia fosse uma moléstia adquirida. Desconfiei, inclusive, que o mal só acometesse bacharéis em Direito. Mais tarde vi que estava errado, porque as biografias dos corruptos estudados (não foram poucos) mostram que eles já era afeitos a falcatruas bem antes de largarem os cueiros. Sérgio Naya, por exemplo, era especialista em vender falsas rifas aos sete anos de idade. Dizem que até um conhecido malandro da Lapa, criador de golpes fantásticos, caiu na lábia do garoto.
É mais provável que a XXXXpatia seja uma doença congênita, como a psicopatia. E sem cura, porque não há caso de corrupto recuperado após tirar uma (sempre pequena) cadeia ou ter os bens (na verdade um décimo do total) bloqueados. Depois de diagnosticada a doença, o único tratamento recomendado é o isolamento do paciente em um manicômio. Sem direito a habeas corpus.
12:29 AM
terça-feira, março 23, 2004
DILEMA
por João do Papel
Um dilema moral desaguou com tudo em minha vida. Gostaria de ter a leveza de um Aldir Blanc para deixar isso engraçado, mas contenho-me; vou com o que tenho, que é quase nada.
O assunto começa assim: pago em dia, com justiça e na bucha aquilo que devo. Mas, quando estou gastando demais em determinado balcão, contraio dívidas sob a desculpa de ter esquecido a carteira em outra algibeira. Isso mata dois coelhos com uma carteirada: me alivia dos gastos daquele momento e cria uma barreira natural para impedir que eu gaste mais naquele lugar.
Mas esse mês eu exagerei. Fiz a "coisa" em dois estabelecimentos; sendo que um é defronte o outro. Agora tenho um problema de almanaque -- como transportar uma galinha, um cachorro e um sapo para o outro lado do rio se você tem apenas um bote e o cachorro não suporta a galinha, o sapo por sua vez se irrita com o cachorro etc? A regra do meu problema é a seguinte: não consigo passar na frente de um lugar onde estou devendo; e também não posso passar no meio da rua, porque tem carros. Como fazer? Escolho o restaurante, onde sou malquisto por dez reais; ou o sebo de livros, onde dei um tombo mais singelo, de seis? Digo, qual dos dois escolho para quitar a dívida?
O lugar onde devo menos, não é mesmo? Não, porque preciso comer no restaurante, que tem uma salada waldorf supimpa e muito azeite aromático. Mas, e as novidades que chegam ao sebo? É uma atividade caótica, tornar-se cliente de sebos. Porque nunca tem o que você quer, e quando chega, é arriscado perder porque deixou de ir ontem. Um dia faz toda a diferença.
Estou cada vez mais longe da resposta. Porém, há uma coisa suprema que posso fazer, sim. Simples, até. Digna e simples. Vou me esforçar um pouco -- mas é assim que se fazem homens maduros. Vou procurar outra rua para passar.
por João do Papel
Um dilema moral desaguou com tudo em minha vida. Gostaria de ter a leveza de um Aldir Blanc para deixar isso engraçado, mas contenho-me; vou com o que tenho, que é quase nada.
O assunto começa assim: pago em dia, com justiça e na bucha aquilo que devo. Mas, quando estou gastando demais em determinado balcão, contraio dívidas sob a desculpa de ter esquecido a carteira em outra algibeira. Isso mata dois coelhos com uma carteirada: me alivia dos gastos daquele momento e cria uma barreira natural para impedir que eu gaste mais naquele lugar.
Mas esse mês eu exagerei. Fiz a "coisa" em dois estabelecimentos; sendo que um é defronte o outro. Agora tenho um problema de almanaque -- como transportar uma galinha, um cachorro e um sapo para o outro lado do rio se você tem apenas um bote e o cachorro não suporta a galinha, o sapo por sua vez se irrita com o cachorro etc? A regra do meu problema é a seguinte: não consigo passar na frente de um lugar onde estou devendo; e também não posso passar no meio da rua, porque tem carros. Como fazer? Escolho o restaurante, onde sou malquisto por dez reais; ou o sebo de livros, onde dei um tombo mais singelo, de seis? Digo, qual dos dois escolho para quitar a dívida?
O lugar onde devo menos, não é mesmo? Não, porque preciso comer no restaurante, que tem uma salada waldorf supimpa e muito azeite aromático. Mas, e as novidades que chegam ao sebo? É uma atividade caótica, tornar-se cliente de sebos. Porque nunca tem o que você quer, e quando chega, é arriscado perder porque deixou de ir ontem. Um dia faz toda a diferença.
Estou cada vez mais longe da resposta. Porém, há uma coisa suprema que posso fazer, sim. Simples, até. Digna e simples. Vou me esforçar um pouco -- mas é assim que se fazem homens maduros. Vou procurar outra rua para passar.
7:36 PM
UM PERFIL E UM SÓ PONTO
por Adalberto Silva
Meu ofício são as palavras, mesmo escorregando no vernáculo, foi com elas que escolhi ganhar a vida, torço pelo Fluminense, acredito que dinheiro trás felicidade, gosto de empadão, já fiz rapel, sonho um dia ser campeão de boxe na categoria meio-médio, babo a Mônica Belucci mas prefiro a Débora Lamm, sou impetuoso, volúvel, apaixonado, gosto de cães, levaria para uma temporada na cadeia meus discos do Sonic Youth, Roberto Carlos e Weezer, ainda vou discutir economia com a repórter Elaine Bast depois de fornicarmos durante horas seguidas, não tenho tatuagem nem hérnia de disco nem gastrite, costumo ler os editais de proclamas, de onde tirei o meu pseudônimo.
por Adalberto Silva
Meu ofício são as palavras, mesmo escorregando no vernáculo, foi com elas que escolhi ganhar a vida, torço pelo Fluminense, acredito que dinheiro trás felicidade, gosto de empadão, já fiz rapel, sonho um dia ser campeão de boxe na categoria meio-médio, babo a Mônica Belucci mas prefiro a Débora Lamm, sou impetuoso, volúvel, apaixonado, gosto de cães, levaria para uma temporada na cadeia meus discos do Sonic Youth, Roberto Carlos e Weezer, ainda vou discutir economia com a repórter Elaine Bast depois de fornicarmos durante horas seguidas, não tenho tatuagem nem hérnia de disco nem gastrite, costumo ler os editais de proclamas, de onde tirei o meu pseudônimo.
12:10 AM
segunda-feira, março 22, 2004
SEGUNDA-FEIRA OU LATA DE MARGARINA
por João do Papel
Muitas pessoas estão se dizendo chateadas com o verão que termina agora. Como se houvesse a quem reclamar contra as chuvas, a falta de graça no carnaval, o excesso de trabalho, a falta de grana, etc. Não é fácil aceitar as coisas como elas são, e dá para fazer pouco contra isso.
Mas que idéia ruim; desabar um sinal digital de um servidor lá de longe para postar uma besteira como essa. Vocês não têm idéia de como é chato sentar à máquina para escrever uma crônica por dia sem ter assunto. Só uma alma encharcada de filosofia e moral pode falar sobre o nada -- pelo menos uma guerra no currículo já estaria bom. Agora arriamos eu e Adalberto este site, sem ter assunto, ainda por cima querendo fazer humor. Pedantes.
Nossa história mais famosa foi vivida só por mim. E ele escuta como uma criança vendo VHS da Disney; repete, repete, repete. A história é a seguinte: éramos, eu e Adalberto, administradores do laboratório de informática do curso de comunicação. E um estudante do ensino fundamental das redondezas usou de seu direito de ir e vir na faculdade pública e criou um projeto social para ele mesmo: Maxwell, um garoto de 10 anos com look andrógino-gordinho, usava os computadores para fazer de tudo, criar páginas na internet, remeter e-mails, e escrever seu famoso livro, que depois ficou constatado era plágio deslavado de Monteiro Lobato.
Um dia Maxwell estava no laboratório desde cedo, e, pela hora do almoço, um pouco antes, colocou sobre a mesa (desktop) uma lata de margarina (can of vegetal butter). Não havia margarina dentro, mas uma tonelada de arroz com feijão, coroada com um ovo frito, ovo estrelado. O cheiro que tomou conta de tudo era de tempero forte, e o agridoce do feijão tampado por quatro horas. Mais meia hora e azedava tudo. Foi um momento de muita sensibilidade. Maxwell puxou uma colher gigante, capaz de comer meio pote de vez, olhou para mim e perguntou se podia fazer a refeição ali. Respondi que sim e saí para chorar.
Mas acho que não consegui chorar.
por João do Papel
Muitas pessoas estão se dizendo chateadas com o verão que termina agora. Como se houvesse a quem reclamar contra as chuvas, a falta de graça no carnaval, o excesso de trabalho, a falta de grana, etc. Não é fácil aceitar as coisas como elas são, e dá para fazer pouco contra isso.
Mas que idéia ruim; desabar um sinal digital de um servidor lá de longe para postar uma besteira como essa. Vocês não têm idéia de como é chato sentar à máquina para escrever uma crônica por dia sem ter assunto. Só uma alma encharcada de filosofia e moral pode falar sobre o nada -- pelo menos uma guerra no currículo já estaria bom. Agora arriamos eu e Adalberto este site, sem ter assunto, ainda por cima querendo fazer humor. Pedantes.
Nossa história mais famosa foi vivida só por mim. E ele escuta como uma criança vendo VHS da Disney; repete, repete, repete. A história é a seguinte: éramos, eu e Adalberto, administradores do laboratório de informática do curso de comunicação. E um estudante do ensino fundamental das redondezas usou de seu direito de ir e vir na faculdade pública e criou um projeto social para ele mesmo: Maxwell, um garoto de 10 anos com look andrógino-gordinho, usava os computadores para fazer de tudo, criar páginas na internet, remeter e-mails, e escrever seu famoso livro, que depois ficou constatado era plágio deslavado de Monteiro Lobato.
Um dia Maxwell estava no laboratório desde cedo, e, pela hora do almoço, um pouco antes, colocou sobre a mesa (desktop) uma lata de margarina (can of vegetal butter). Não havia margarina dentro, mas uma tonelada de arroz com feijão, coroada com um ovo frito, ovo estrelado. O cheiro que tomou conta de tudo era de tempero forte, e o agridoce do feijão tampado por quatro horas. Mais meia hora e azedava tudo. Foi um momento de muita sensibilidade. Maxwell puxou uma colher gigante, capaz de comer meio pote de vez, olhou para mim e perguntou se podia fazer a refeição ali. Respondi que sim e saí para chorar.
Mas acho que não consegui chorar.
5:35 PM
UM BANQUINHO, UM VIOLÃO
por Adalberto Silva
Eu detesto violão. Descobri isso numa festinha na casa de um amigo. Bem, não odeio completamente. Culpa das canções de Bob Dylan e do Rei Roberto tocando “Detalhes”, que ajudaram a diminuir a minha antipatia pelo instrumento. Aliás, a repúdia maior não é nem em relação ao som (neste quesito, eu odeio, em caps lock, gaita), mas pelo seu cunho antisocial.
Explico melhor. Na festa, regada a cerveja e adubada com carne vermelha, não havia conversa, interação pessoal, nada. Só a cantoria das pérolas da MPBB (música popular brasileira de barzinho): “O Bêbado e o equilibrista”, “Oceano”, “Já sei namorar”, "Tarde em Itapuã", legião urbana, mamonas assassinas. As únicas palavras ouvidas, tirando a letra das músicas, eram um “pega uma cerveja pra mim?”, “toca Zeca Pagodinho”, “nossa, essa é ótima”. O ambiente estava perfeito para os tímidos patológicos, daqueles que se borram nas calças quando interpelados por alguém.
Apesar de tudo, fui um dos últimos a sair. Já em casa, com as vistas embaçadas e o sangue cheio de cerveja, tentei ver a corrida de Fórmula 1. No momento em que digito essas linhas, ainda não sei o resultado da corrida. Mas a minha prostração no sofá da sala rendeu uma boa teoria.
Enquanto olhava a TV, imaginei que o violão, ou melhor, a ausência dele, poderia ter mudado o destino do Brasil. Transporte-se para o período da ditadura militar. A oposição, fervilhante, repleta de universitários desejosos de liberdade. E universitários desejosos de liberdade, como se sabe, adoram sentar em torno de um violão. Quantas discussões, plenárias, articulações de guerrilhas, passeatas foram adiadas por causa paixão coletiva pelo instrumento de seis cordas.
Pensando bem, até que o violão é um instrumento legalzinho... Se não fosse ele, a esquerdinha se articularia melhor e o Brasil poderia ter se tornado uma Albânia, ou uma Cuba hipertrofiada, quem sabe Camboja. Sem violão, não haveria nada de afrouxamento lento, gradual e seguro. Mas se o país pulasse do Comunismo para o Capitalismo pululante do Tigres Asiáticos? A melhor coisa é esquecer a ucronia para não ficar igual a um cachorro em busca do próprio rabo.
Uma coisa é certa. Da próxima vez em que eu for a uma festinha e der de cara com a rodinha de violão, vou ter algo para culpar se for embora sem beijar nenhuma garota.
por Adalberto Silva
Eu detesto violão. Descobri isso numa festinha na casa de um amigo. Bem, não odeio completamente. Culpa das canções de Bob Dylan e do Rei Roberto tocando “Detalhes”, que ajudaram a diminuir a minha antipatia pelo instrumento. Aliás, a repúdia maior não é nem em relação ao som (neste quesito, eu odeio, em caps lock, gaita), mas pelo seu cunho antisocial.
Explico melhor. Na festa, regada a cerveja e adubada com carne vermelha, não havia conversa, interação pessoal, nada. Só a cantoria das pérolas da MPBB (música popular brasileira de barzinho): “O Bêbado e o equilibrista”, “Oceano”, “Já sei namorar”, "Tarde em Itapuã", legião urbana, mamonas assassinas. As únicas palavras ouvidas, tirando a letra das músicas, eram um “pega uma cerveja pra mim?”, “toca Zeca Pagodinho”, “nossa, essa é ótima”. O ambiente estava perfeito para os tímidos patológicos, daqueles que se borram nas calças quando interpelados por alguém.
Apesar de tudo, fui um dos últimos a sair. Já em casa, com as vistas embaçadas e o sangue cheio de cerveja, tentei ver a corrida de Fórmula 1. No momento em que digito essas linhas, ainda não sei o resultado da corrida. Mas a minha prostração no sofá da sala rendeu uma boa teoria.
Enquanto olhava a TV, imaginei que o violão, ou melhor, a ausência dele, poderia ter mudado o destino do Brasil. Transporte-se para o período da ditadura militar. A oposição, fervilhante, repleta de universitários desejosos de liberdade. E universitários desejosos de liberdade, como se sabe, adoram sentar em torno de um violão. Quantas discussões, plenárias, articulações de guerrilhas, passeatas foram adiadas por causa paixão coletiva pelo instrumento de seis cordas.
Pensando bem, até que o violão é um instrumento legalzinho... Se não fosse ele, a esquerdinha se articularia melhor e o Brasil poderia ter se tornado uma Albânia, ou uma Cuba hipertrofiada, quem sabe Camboja. Sem violão, não haveria nada de afrouxamento lento, gradual e seguro. Mas se o país pulasse do Comunismo para o Capitalismo pululante do Tigres Asiáticos? A melhor coisa é esquecer a ucronia para não ficar igual a um cachorro em busca do próprio rabo.
Uma coisa é certa. Da próxima vez em que eu for a uma festinha e der de cara com a rodinha de violão, vou ter algo para culpar se for embora sem beijar nenhuma garota.
12:06 AM
domingo, março 21, 2004
NERUDA NA JANELA
por João do Papel
Que efeito formidável teve em minha viagem de ônibus até em casa a leitura de "Pelas Praias do Mundo", livro de Pablo Neruda em prosa -- estilo que o próprio execrava, mas dizia que "tem-se de fazer". O primeiro texto do volume é mais hermético que o necessário, e não sei até que ponto vítima de uma tradução porca. As frases são organizadas como uma enfestação de formigas, rivais, porque brigam num esquema caótico, violento, rugem como ondas fortes terminando em rochas e a poesia desaparece no ar como a água do mar pulverizada. Não me ficou retido nada da primeira experiência com Neruda.
Mas esse foi o texto inaugural, um estudo -- canhoto, a meu ver -- sobre a poesia andina, tão desconhecida minha quanto a culinária geodésia. Virei a página a tempo de ver Neruda revoltar-se contra o primeiro texto e entregar duas ótimas crônicas extraídas de sua auto-biografia, "Confesso que vivi". Sua descrição da cidade de Valparaíso, a epopéia gráfica que resulta, a densidade do relato e a leveza das imagens, o frescor do estilo, valem o livro (que aliás é emprestado, e não volverá a casa muito cedo).
Da janela do ônibus, voltando para meu povoado da infância, a poesia de Pablo alinhou-se como rebocador à minha saudade transatlântica e guiou meu sentimento pela tarde ensolarada, o astro-rei estático no céu, brilhando com gosto. O sol parado no ar e o verde das pastagens que eram pardas em minha memória, viçosas das chuvas deste verão de cântaros.
Chuva que caiu coesa como um discurso de Ruy Barbosa, batendo suas gotas na cidade cansada e pobre. Só restou acompanhar a apresentação do jazz de Afonso Abreu, sobrinho do Urso, o maior cronista de Cachoeiro de todos os tempos, Rubem Braga.
por João do Papel
Que efeito formidável teve em minha viagem de ônibus até em casa a leitura de "Pelas Praias do Mundo", livro de Pablo Neruda em prosa -- estilo que o próprio execrava, mas dizia que "tem-se de fazer". O primeiro texto do volume é mais hermético que o necessário, e não sei até que ponto vítima de uma tradução porca. As frases são organizadas como uma enfestação de formigas, rivais, porque brigam num esquema caótico, violento, rugem como ondas fortes terminando em rochas e a poesia desaparece no ar como a água do mar pulverizada. Não me ficou retido nada da primeira experiência com Neruda.
Mas esse foi o texto inaugural, um estudo -- canhoto, a meu ver -- sobre a poesia andina, tão desconhecida minha quanto a culinária geodésia. Virei a página a tempo de ver Neruda revoltar-se contra o primeiro texto e entregar duas ótimas crônicas extraídas de sua auto-biografia, "Confesso que vivi". Sua descrição da cidade de Valparaíso, a epopéia gráfica que resulta, a densidade do relato e a leveza das imagens, o frescor do estilo, valem o livro (que aliás é emprestado, e não volverá a casa muito cedo).
Da janela do ônibus, voltando para meu povoado da infância, a poesia de Pablo alinhou-se como rebocador à minha saudade transatlântica e guiou meu sentimento pela tarde ensolarada, o astro-rei estático no céu, brilhando com gosto. O sol parado no ar e o verde das pastagens que eram pardas em minha memória, viçosas das chuvas deste verão de cântaros.
Chuva que caiu coesa como um discurso de Ruy Barbosa, batendo suas gotas na cidade cansada e pobre. Só restou acompanhar a apresentação do jazz de Afonso Abreu, sobrinho do Urso, o maior cronista de Cachoeiro de todos os tempos, Rubem Braga.
2:44 PM