quarta-feira, maio 05, 2004

KILLER
por Adalberto Silva

Esmagou formigas. As bichinhas, minúsculos pontos negros no piso branco, saboreavam desesperadas uma migalha de biscoito, ou de pão. Centenas delas reunidas em banquete noturno no seu próprio quarto. Ousadia. Olhou para o círculo por elas formado, pouco menor que uma moeda de dez centavos, e pisou forte, sem piedade. De pronto foi tomado pela consciência de estar no topo da cadeia evolutiva, de pertencer à espécie animal senhora da terra, dos mares, do universo inteiro.

O assassínio fez com que ele se colocasse no mesmo altar onde descansam Áquila, Aníbal, Alexandre o Grande, Napoleão Bonaparte e outros guerreiros da História. Para o bem da humanidade, a vontade de potência logo esmaeceu.

Recordou-se de outro “inseticídio”. A vítima foi um grilo bonito, verde, com uns cinco centímetros de comprimento. O infeliz entrou na sala sem pedir licença, Bonner e Fátima em rede nacional, e acomodou-se tranqüilamente na parede. Um grilo não é uma barata, por isso agiu com diplomacia. Pegou o bicho pelas asas, após perseguição demorada, e jogou varanda abaixo. Teimoso, o grilo voltou e pousou no mesmo lugar. A mãe sugeriu que o matasse. “Matar ou tentar pegá-lo?”, perguntou, como soldado a consultar o comandante da missão. Recebeu a autorização para o ataque, pegou o jornal dobrado, acertou de leve o inseto, recolheu o cadáver e voltou ao seu lugar preferido no sofá. Cumpriu ordens e lavou as mãos.



12:28 AM

domingo, maio 02, 2004

DIRIJA COM CUIDADO
por João do Papel


Custa dizer que não tenho carteira de motorista. Você não imagina, seu guarda, o que se passa comigo quando vejo o senhor pelo canto do olho; sobe um arrepio da ponta do pé, é gelado, duas mãos frias torcendo alguma coisa dentro da garganta, como se torce um pano de chão. Eu vi, digo, eu vejo a batida, porque tinha uma velha e ela freiou forte no amarelo, não deu tempo, porrou mesmo, e como sei que quem bate atrás está errado... só penso um palavrão bem sujo e soletro ele com gosto, mentalmente, claro, porque tenho educação. É só fechar os olhos que eu vejo tudo isso, mas não é bom fechar, o senhor sabe, pode acontecer alguma coisa, mexer no CD Player então, que pecado, distrair-se com os botões, ainda mais eu, que sempre confundo o volume com aquele que muda de faixa. A vovó do carro da frente bateu o peito no volante e já saiu do carro, diz que lhe falta o ar, curvada e com a mão nas cadeiras; de repente a rua pára, todo mundo olhando para ela com cara de preocupado, depois para mim com cara de "seu moleque irresponsável, playboy filho de uma...". Seu guarda, espera que essa curva é perigosa... opa, opa... então, seu guarda, você não imagina o que é não ter habilitação para dirigir, e ter uma imaginação razoável, ao mesmo tempo. Quando um colega do senhor aparece de viatura e está queimando combustível como quem não quer nada, aquilo que se chama "ronda", eu sempre acho que ele está piscando farol para mim, pedindo que eu encoste. É assustador. Mas eu adoro. E nunca fui pego. Viu, seu guarda? Nunca colocaram a mão em mim, também porque dirijo bem. Se você me pára um dia, vou dizer que sou motorista prático, como os dentistas, não tem? Alguma lei, dentre esses inúmeros e absurdos textos que o legislativo brasileiro vota e aprova, há de me proteger. Mas se mesmo assim o senhor abrir o coldre e sacar o bloco de multa, ou passar a mão no rádio para chamar a viatura que efetuará a prisão, eu sempre levo comigo tutu o bastante para tomar uma cervejinha. Combinado?
11:20 PM

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