quarta-feira, junho 02, 2004

MENSAGEM ABORTADA
por Adalberto Silva

O cursor na tela do micro pisca continuamente, no mesmo ritmo da batida dos pés de C. no ladrilho do quarto, na verdade um cubículo de 3,5 m² em um apartamento diminuto anunciado pela construtora como um exemplo de conforto e status. O cômodo abriga uma cama com baú, um guarda-roupas branco ao longo da parede e a mesa do computador, entulhada de papéis rabiscados, CDs, disquetes, clipes e com uma infinidade de manchas circulares de café ou refrigerante. No ar, o cheiro de cigarro entranhado nos tecidos, madeiras e paredes e retido pela janela sempre fechada acusa o vício do ocupante, que tenta, suado porque é verão, escrever um e-mail libidinoso.

C. cata um cigarro sem olhar o maço enquanto busca palavras para começar a mensagem, que pretende enviar a duas paixões não-declaradas. Um único texto, para duas mulheres diferentes, unidas apenas pelo sobrenome italiano e por serem desejadas (sem saber) pelo mesmo cara. Ele pensou em buscar um modelo pronto na internet, mas desistiu com medo de que elas descobrissem e zombassem da sua falta de criatividade, pior, que encaminhassem o e-mail para amigos, que repassariam para outros amigos, e então C. passaria a ser motivo de chacota. Decidiu se declarar depois que elas deixaram de responder seus e-mails amigáveis. Sentiu que a amizade enfraquecia e pensou em abrir o jogo, escrever palavras apaixonadas só para aliviar a consciência, como o vestibulando que não estudou nada e comparece ao exame certo do fracasso.

Ele acende mais um cigarro. O isqueiro à prova de vento faz um chhhhiiiiiiii e quebra o silêncio do ambiente, cujo calor provocaria desconforto até em operário de alto-forno. C. traga com força. A nicotina caminha pela faringe, traquéia, brônquios e invade os pulmões do rapaz. Dali embarca na corrente sangüínea e atinge o cérebro, onde cria um turbilhão de frases: “linda flor, você foi a coisa mais formosa que nasceu no meu sofrido coração”, “queria-te em meus braços”, “tu és a deusa das minhas noites solitárias”, “amazona insaciável”, “seios deliciosos”. C. fuma, sua, coça a cabeça, cata palavras no dicionário, corrige erros e finalmente termina a carta.

Pega mais um cigarro. Vê na fumaça o rosto de R., a loira magrinha, meiga, tímida e um pouco caipira, tão diferente da fogosa e corpulenta F., morena risonha e de lábios carnudos que surge dançando nos vapores malcheirosos. Bebe um gole de coca-cola. Lembra do vocabulário engraçado de R., de pileque após dois copos de vinho. Sente saudade do erotismo adolescente e da gargalhada orgástica de F. Depois, num surto de lucidez, acha tudo aquilo ridículo: o quarto abafado, as guimbas empilhadas no cinzeiro improvisado, a sua barriga flácida.

Fecha o arquivo do texto sem salvá-lo. Depois escancara a janela e promete parar de fumar. Antes de sair para tomar um banho, ainda diz em voz alta, como uma súplica que ninguém vai escutar porque a casa está vazia: “Foda-se F. e R. Foda-se.”


12:21 AM

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