quinta-feira, agosto 12, 2004

VAPOR DE SÓDIO
por Adalberto Silva

O corredor chega à ladeira. É a parte preferida do seu treino noturno. Ele está cansado, ofegante, com as pernas doloridas, mas com o ânimo renovado pelo trecho íngreme de aproximadamente 300 metros. Lá não há ruído de carros, pedestres em demasia, guardas entediados, travestis barulhentos. Ele só ouve o som do esvaziar e encher dos seus pulmões misturado ao toc-toc-toc dos tênis batendo no asfalto. As duas beiradas do caminho são cobertas por pés de bambu, que se tocam lá no alto formando uma espécie de túnel. Ali, no túnel, o corredor se sente poderoso, mais rápido, mais resistente, sem dor, cansaço ou sede. Ele é o Senhor do Universo, o super-homem, mesmo que por uns míseros minutos. Experimenta a sensação de ser único, cai em êxtase diante da individualidade plena a tocar-lhe os ombros. Levanta a cabeça, olha para o céu, fecha os olhos por uns instantes. Recomposto, avista uma pequeno galho de bambu logo à frente, alguns centímetros acima dos seus braços erguidos. Pula para tocá-lo e também para celebrar o momento ímpar. Não alcança. No pouso, pisa desajeitado e cai de joelhos. Ergue-se rapidamente e continua a corrida, pois nada pode deter o Senhor do Universo. Engano. Um tec-tec-tec informa que ele não está sozinho na ladeira escura. Logo depois de se levantar, o corredor é ultrapassado por outro atleta, com o mesmo tênis preto, joelheira na perna esquerda, camiseta branca e short azul. Seria um clone, um duplo?, delira, pouco antes de voltar à realidade. Após a queda e a ultrapassagem, o Senhor do Universo deu lugar a um amontoado de músculos, tendões e ossos encharcados de suor. O corredor é só mais um entre bilhões. Está desapontado, como o menino que vê seu sorvete espatifado no chão logo na primeira lambida. Mas no dia seguinte ele estará lá, no seu portal de bambu pintado com luzes de vapor de sódio, delirando que é Rei, desta vez com o cuidado de olhar para trás para ver se há algum estraga prazeres por perto.
12:15 AM

Site Meter