sábado, dezembro 11, 2004
SONO DE CACHORRO
por Adalberto Silva
Eu vi um cachorro morto. Vi quando caminhava em direção à locadora, onde iria devolver o filme “Amores Perros”, que a tradução transformou em “Amores Brutos”. Não pude deixar de notar o absurdo da situação: o cachorro caído na calçada, cercado por meia dúzia de curiosos e eu vendo tudo isso carregando nas mãos um filme de forte presença canina. Ignoro a raça do cão, de pêlo curto e branco coberto de manchas circulares pretas. Talvez fosse um dálmata. Ou um filhote de dog alemão. Pensei, a princípio, que o ele estivesse ferido e que as pessoas ao redor estivessem esperando o socorro médico, que iria imobilizá-lo, cobri-lo com um cobertor prateado e levá-lo ao pronto-socorro numa UTI móvel. A idéia ingênua sumiu da minha cabeça assim que o DVD retornou à prateleira da locadora. Na volta o cão ainda estava lá, imóvel, com o focinho coberto por uma fina camada de sangue. Pude reparar melhor nas pessoas que o cercavam: um homem de meia idade em traje social, duas mulheres também de meia idade vestindo bermudas, camisetas de malha e chinelos, outro homem e uns dois garotos. Deduzi que o cão fora atropelado pelo homem em traje social e que um das mulheres era sua dona. Deduzi que o cão fugira de casa e estava alegre com a liberdade conquistada, antes de morrer atingido por um carro vermelho metálico. Imaginei muitas outras coisas a respeito enquanto voltava para casa. Tentei buscar um significado para o fato, como se fosse algo metafísico, uma trama costurada pelo destino. Concluí que minhas idéias não passavam de bobagens. Ao contrário do acidente de “Amores Perros”, aquele acidente não mudaria a vida de ninguém. Nem a da dona do cão, nem a do homem que o atropelou e tampouco a minha, que estava ali por acaso. Ao contrário do filme, a hemorragia do cachorro era escassa e sem cor, o motorista não fugia de uma perseguição, o céu não tinha efeito de photoshop e meus passos não eram marcados por trilha sonora.
A vida fora da película é assim mesmo, um pouco insossa.
por Adalberto Silva
Eu vi um cachorro morto. Vi quando caminhava em direção à locadora, onde iria devolver o filme “Amores Perros”, que a tradução transformou em “Amores Brutos”. Não pude deixar de notar o absurdo da situação: o cachorro caído na calçada, cercado por meia dúzia de curiosos e eu vendo tudo isso carregando nas mãos um filme de forte presença canina. Ignoro a raça do cão, de pêlo curto e branco coberto de manchas circulares pretas. Talvez fosse um dálmata. Ou um filhote de dog alemão. Pensei, a princípio, que o ele estivesse ferido e que as pessoas ao redor estivessem esperando o socorro médico, que iria imobilizá-lo, cobri-lo com um cobertor prateado e levá-lo ao pronto-socorro numa UTI móvel. A idéia ingênua sumiu da minha cabeça assim que o DVD retornou à prateleira da locadora. Na volta o cão ainda estava lá, imóvel, com o focinho coberto por uma fina camada de sangue. Pude reparar melhor nas pessoas que o cercavam: um homem de meia idade em traje social, duas mulheres também de meia idade vestindo bermudas, camisetas de malha e chinelos, outro homem e uns dois garotos. Deduzi que o cão fora atropelado pelo homem em traje social e que um das mulheres era sua dona. Deduzi que o cão fugira de casa e estava alegre com a liberdade conquistada, antes de morrer atingido por um carro vermelho metálico. Imaginei muitas outras coisas a respeito enquanto voltava para casa. Tentei buscar um significado para o fato, como se fosse algo metafísico, uma trama costurada pelo destino. Concluí que minhas idéias não passavam de bobagens. Ao contrário do acidente de “Amores Perros”, aquele acidente não mudaria a vida de ninguém. Nem a da dona do cão, nem a do homem que o atropelou e tampouco a minha, que estava ali por acaso. Ao contrário do filme, a hemorragia do cachorro era escassa e sem cor, o motorista não fugia de uma perseguição, o céu não tinha efeito de photoshop e meus passos não eram marcados por trilha sonora.
A vida fora da película é assim mesmo, um pouco insossa.
1:19 AM