terça-feira, junho 15, 2004

REDENÇÃO
por João do Papel


"Sentada sobre a táboa suja de cimento, oitavo andar do prédio em construção. A menina levantou-se sem dificuldade, girou a bolsa que trazia consigo, levou o dedo até uma das paredes que escorava o guarda-chuva, tirou com a unha um pedaço de tinta, guardou em seu bolso e tornou a sentar."

O primeiro parágrafo de seu novo conto não ia além disso. Uma menina desconhecida, sem memória, que daria uma perfeita esposa ou namorada, mas que só havia na sua imaginação. Prioridades, pensou. História primeiro, esposa depois. Olhou no relógio sobre a mesa: já passara da hora de dormir. Deveria acordar e refazer mais um dia, ser um menino comportado em mais uma manhã fria. Como gostava de lembrar do tempo quando eram todos inocentes e tomavam o café fumegante que a avó fazia, e se fartavam da broa, desvelando-a, que sempre estava coberta com um pano de tecido velho, um linho com as fibras espaçadas, a trama quase desfeita. Pensava nisso enquanto olhava para o irmão dormindo. Há duas semanas ele toma remédios para dormir, está começando a melhorar dos ataques de "agora fudeu, quero voltar, não vai dar certo". Ele e o irmão eram invencíveis nas brincadeiras do bairro, e eram também as crianças mais educadas. Embora isso não tenha importado muito, já que, por dentro, debochavam com gosto. Seu irmão e ele, dois príncipes na casa da avó, tomando café em canecas de esmalte, pisando o chão frio com chinelos que eram guardados numa sala especial, como tesouros, especialmente para eles, que se abraçavam e riam bastante, esperando a nova broa sair do forno, mexendo a cabeça nas ondas de erva doce que o velho fogão emitia, experimentando um extase religioso (depois descobriria que parece mais o sexo bom). Agora, os dois estão nessa cidade estranha, e um deles está doente. O irmão, que daqui a algumas horas terá que sair, enfrentar o frio e o gelo nas bochechas, atravessar meio mundo para trabalhar. Ele não, ele fica em casa, de licença no emprego, sob desculpa de dar os últimos retoques numa ficção que, propaganda dele mesmo, vai superar grande parte do que é publicado hoje no mundo. E como a literatura nacional está de fato ruim, e como ele escreve até bem, entrega textos pequenos e rápidos sobre assuntos às vezes difícieis, foi-lhe creditada a tarefa. Mas está há três dias dormindo pouco, trabalhando pouco, pensando demais.

Aquele primeiro parágrafo foi a única coisa que fez e achou decente. Lembra de ter lido algumas revistas matérias esporádicas, nem matérias inteiras, mas parágrafos destilados entre outros interesses, sobre escritores famosos e suas maneiras de criar. Já havia tentado caminhar, correr, jogar xadrez, fazer sexo com prostitutas. A inspiração não descia. Ele tinha certeza de que estava ali, no topo da cabeça, isolada do resto, como óleo sobre a água. Sentia mais que um conto para ser publicado em revista. Tinha certeza que era até mais que um livro, talvez uma coleção de romances ricos em detalhes e significado, pulsando de vida e capaz para mudar quem lesse. Mas a inspiração não se misturava com a parte que desce para os dedos, para o teclado. Ele estava ficando maluco de tentar reagir a inspiração, misturando-a com o resto. E o tempo passava. Já eram quatro dias, intensos como os primeiros de uma guerra, de um divórcio. A vontade de escrever não morria, mas o corpo físico sentia cada segundo como um prisioneiro sob tortura. A inspiração, esse óleo perfumado, repousando sobre o caldo ralo da consciência, enganava, fingia que se misturava. Repare que, quando se agita bastante um recipiente com óleo e água, eles parece se misturar, porque o óleo é quebrado em gotas muito pequenas. Mas de bem perto, você vai ver que tudo não passa de água recheada com pequenas esferas douradas, que com o tempo voltam para a cobertura e descansam como sempre. Óleo intocável.

Seu irmão acordou. Assustado, como sempre. Perguntou as horas com voz rouca, o nariz escorrendo, molhando a fronha do travesseiro. Que vontade de abraçar o irmão e chorar por horas. Disse para ele para dormir mais um pouco. O irmão abaixou a cabeça, deixando a vista apenas um recorte de sua cabeleira desarrumada, e a face, adornada por uma pequena jóia, que brilhava com a luz da rua. Ele ficou curioso e abaixou-se para ver melhor. Pisou na borda da cama para equilibrar o corpo, apoiou a mão no colchão, sem que o irmão sentisse, para que continuasse a dormir. Em vão. A jóia era seu olho, que não relaxava ou piscava, apenas brilhava. Seu irmão respirava rápido, e parecia pensar mais rápido ainda, de madrugada, olhando o poste de iluminação pública. Sentiu mais um aperto no coração. Voltou para o computador, para o parágrafo, para a ficção que nasceu pretensiosa e nunca vai ver a cor do papel de revista; o destino da tarefa assumida parece ser o de fechar o ciclo de mais um emprego, da principal fonte de renda da casa. Mais uma vez.

A cada vez que relia o parágrafo, o desespero ganhava reforço desnecessário. Não existe nada naquelas pobres linhas. Entrelinhas vazias. O que tinha na cabeça quando pensou que seria possível? A inspiração não está em lugar algum. Talvez estivesse mesmo dentro dele, ao lado do coração, atrás do pulmão, sobre o fígado. De repente, o fígado parece uma escolha viável. A volta de uma antiga sensação também o animou. Do tempo quando bebia cachaça barata com os amigos, ouvia música alta e falava de mulheres quentes. Seu irmão não gostava disso. Era de caráter menos frágil, mais inteligente, falante, querido. Vegetariano desde os 14 anos, não usava copos de papel descartável. Mas, voltando ao fígado, depois de render completamente o órgão, essas noites de esbórnia acabavam ao pé de boldo no quintal da casa, ironicamente cultivado pelo irmão careta. Depois de tomar um chá amargo e de textura porosa, sentia-se como um deus escriba. Sentava na mureta da varanda, virava a cara para o resto do mundo e escrevia como um evangelista. Trazia personagens para lugares que só ele conhecia, pelo braço, como nos filmes americanos quando alguém guia a pessoa vendada até uma surpresa. Era uma brincadeira sensual, tirar a cegueira dos personagens aos poucos, porque ele sabia o que estava se passando, ao contrário deles. Era Deus, com maiúscula. Uma divindade alcoolizada e de boldo escorrendo pelo queixo, fazendo uma linha verde na camisa. Ele escrevia um desses parágrafos e ia para a frente do espelho, olhar os olhos de Deus.

Os personagens, muito seus amigos, estavam todos bêbados e em volta da mesma fogueira, na noite de hoje, se aquecendo do frio e do medo. Mas nenhum deles falava. Estavam muito acesos, os olhos abertos e faiscantes. Seus personagens interiores estavam expostos, conscientes de tudo, enxergando tudo. Era um problema sério. É como se os olhos dos personagens fossem também os olhos dele. Enquanto ele, o autor, fosse cego para algum assunto, podia ir curando-se a si mesmo, e dando vida ao personagem ao mesmo tempo, fazendo literatura no caminho da luz. Mas, agora, a sensação era que seus personagens eram comparsas trapalhões, nada mais, gente chata porque cumprira sua função no mundo. Estavam estéreis. O contrário da cegueira, a visão plena, talvez seja a cegueira crônica, o esforço diário que o cego faz para enxergar alguma coisa e se adpatar ao mundo normal.

A única coisa que resta é curar o pileque dos personagens. Entrar com tudo em sua própria cabeça, convencer as criaturas a peregrinar ao pé de boldo. Dar tapinhas nas costas e bendizer as maravilhas de mochilar na alma de um escritor, pedir carona para saudades antigas, fazer ciclismo esportivo sobre amores sepultados. Isso é mesmo interessante. Em sua cabeça existem túmulos gigantes para os amores perdidos. Não é o tributo a uma pessoa querida, mas uma laje de cimento como aquela deitada sobre Chernobyll, para evitar que a radiação escape e faça mais mal. É assim que funcionam as sepulturas dos amores, sempre gigantes, com o nome e o camafeu da pessoa, cobertas por quilometros de cimento cinza, áspero e sem esperança, que é a matéria-prima de fazer o nada, o grande vazio que só cresce com o tempo e a distância. Tempo e distância são a usina do cimento que isola a radiação dos grandes amores.

Agora preciso fazer o café. Seu irmão precisa levantar e se vestir. Ele vai para a cozinha. Um tempo depois:

- Mano, o café tá pronto.

- Hum, tudo bem. Você viu? Aquela árvore, caiaram parte das folhas.

- Ah, sim.

- Mas isso impede que elas respirem.

- Hum?

- Você entendeu o que eu disse?

- Caíram as folhas...

- Eu disse que caiaram as folhas. Caiar, pintar com cal. A prefeitura sempre faz isso, nos meio-fios e nos troncos de árvores.

- Ah, sim. Acho que, antes de ir embora, o pintor deve limpar o pincel nas folhas da última árvore.

- Não se chama pincel. O nome é broxa.

- Broxa é você.

- Tudo bem. Mas o cal faz as folhas morrerem.

- Eu acho que a árvore devia ficar feliz que não pintaram todas as suas folhas. Muita gente não tem a mesma sorte.

- É. Eu também acho.

Depois, quando ele voltou com o pão de forma para o dejejum do irmão, encontrou a cama vazia. Ouviu sons vindo do banheiro, correu até lá e chorou, porque encontrou o irmão sofrendo. Com a cara inchada porque acabara de acordar, seu querido irmão chorava como nunca. E ele chorou mais. Depois chamou-o para tomar café. Passou o tempo todo olhando os ladrilhos tortos do chão. Depois da broa e de se lembrarem da avó, o irmão saiu, aparvalhado, mas com boa reserva de coragem. E ele voltou para o parágrafo. "Sentada sobre a táboa suja de cimento, oitavo andar do prédio em construção."
5:09 AM

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