sexta-feira, setembro 24, 2004
ÚLTIMA CANÇÃO
por Adalberto Silva
Vez ou outra a lembrança da cena surge sem pedir licença: o eletricista na sala de estar da minha casa, sentado no sofá macio com um cigarro entre os dedos e os olhos fechados enquanto ouve “A última canção”. Paulo Sérgio em CD pirata, no aparelho de som já antiquado, quase na hora da Ave Maria.
O eletricista é um branquelo magro, comprido, quarenta e poucos anos chegando aos cinqüenta, boca com uns dentes a menos e aquele olhar sereno de quem aceita o desenrolar da vida. Eu encomendava com ele aquilo que eu não podia pagar nas lojas. Ou melhor, algo que funcionasse mais ou menos (sempre muito menos!!!) como meus objetos de desejo. Foi ele quem construiu a caixa amplificada com a qual eu tocava baixo. Uma caixa pouco potente e temperamental, que distorcia quando eu queria som limpo e emitia som cristalino nas horas em que eu pedia um fuzz. Mesmo assim me diverti horrores com ela. Depois da caixa, vieram o PC 386 que cheirava a queimado, a ilha de edição caseira que nunca chegou a funcionar e o gato da tevê por assinatura.
Eu não me lembro exatamente o que fazia naquele início de noite. Só sei que estava ocupado quando a campainha tocou e o amigo me pediu o favor. Disse que havia conseguido o CD emprestado e queria ouvi-lo, ainda que rapidamente. Ele não tinha CD player em casa. Permiti, e em segundos ele já manipulava o som com a intimidade conquistada por meia dúzia de consertos no aparelho. Faixa um, faixa dois, faixa três, faixa quatro.
“Esta é a última canção que eu faço pra você
já cansei de viver iludido só pensando em você
se amanhã você me encontrar
de braços dados com outro alguém
faça de conta que pra você
não sou ninguém"
Ele apanhou o maço de Derby azul no bolso da camisa folgada, fisgou um cigarro e o acendeu sem cerimônia. A residência onde fumantes são aconselhados a saciar o vício na varanda foi tomada pelo cheiro de tabaco. A fumaça me incomodava. Soltei um espirro meio dissimulado. O eletricista, com o cigarro entre o polegar e o indicador, me pediu um cinzeiro. Fiquei preocupado com o cheiro nas cortinas, com as cinzas no tapete, com o estado da sala na hora da novela das seis, sagrada para minha mãe. Pude entender o olhar do sacristão ao me ver de boné na igreja do bairro, uns dez anos atrás.
Faixa cinco. O eletricista apertou stop e retirou o CD. Ficou mais altivo, renovado. Ofereci café e ele aceitou. Bebeu depressa, levantou-se e pegou a bolsa e caminhou em direção à porta. Na saída, me agradeceu e perguntou se eu queria comprar um Master System. Respondi que não tinha dinheiro.
Não sei por que, mas gosto de contar esta história para os amigos. De uns tempos pra cá, passei a contar também para os possíveis amigos. Os que escutam com admiração merecem a minha amizade. Os que não disfarçam o enfado ganham cartão vermelho. Até agora ninguém foi aprovado no teste.
por Adalberto Silva
Vez ou outra a lembrança da cena surge sem pedir licença: o eletricista na sala de estar da minha casa, sentado no sofá macio com um cigarro entre os dedos e os olhos fechados enquanto ouve “A última canção”. Paulo Sérgio em CD pirata, no aparelho de som já antiquado, quase na hora da Ave Maria.
O eletricista é um branquelo magro, comprido, quarenta e poucos anos chegando aos cinqüenta, boca com uns dentes a menos e aquele olhar sereno de quem aceita o desenrolar da vida. Eu encomendava com ele aquilo que eu não podia pagar nas lojas. Ou melhor, algo que funcionasse mais ou menos (sempre muito menos!!!) como meus objetos de desejo. Foi ele quem construiu a caixa amplificada com a qual eu tocava baixo. Uma caixa pouco potente e temperamental, que distorcia quando eu queria som limpo e emitia som cristalino nas horas em que eu pedia um fuzz. Mesmo assim me diverti horrores com ela. Depois da caixa, vieram o PC 386 que cheirava a queimado, a ilha de edição caseira que nunca chegou a funcionar e o gato da tevê por assinatura.
Eu não me lembro exatamente o que fazia naquele início de noite. Só sei que estava ocupado quando a campainha tocou e o amigo me pediu o favor. Disse que havia conseguido o CD emprestado e queria ouvi-lo, ainda que rapidamente. Ele não tinha CD player em casa. Permiti, e em segundos ele já manipulava o som com a intimidade conquistada por meia dúzia de consertos no aparelho. Faixa um, faixa dois, faixa três, faixa quatro.
“Esta é a última canção que eu faço pra você
já cansei de viver iludido só pensando em você
se amanhã você me encontrar
de braços dados com outro alguém
faça de conta que pra você
não sou ninguém"
Ele apanhou o maço de Derby azul no bolso da camisa folgada, fisgou um cigarro e o acendeu sem cerimônia. A residência onde fumantes são aconselhados a saciar o vício na varanda foi tomada pelo cheiro de tabaco. A fumaça me incomodava. Soltei um espirro meio dissimulado. O eletricista, com o cigarro entre o polegar e o indicador, me pediu um cinzeiro. Fiquei preocupado com o cheiro nas cortinas, com as cinzas no tapete, com o estado da sala na hora da novela das seis, sagrada para minha mãe. Pude entender o olhar do sacristão ao me ver de boné na igreja do bairro, uns dez anos atrás.
Faixa cinco. O eletricista apertou stop e retirou o CD. Ficou mais altivo, renovado. Ofereci café e ele aceitou. Bebeu depressa, levantou-se e pegou a bolsa e caminhou em direção à porta. Na saída, me agradeceu e perguntou se eu queria comprar um Master System. Respondi que não tinha dinheiro.
Não sei por que, mas gosto de contar esta história para os amigos. De uns tempos pra cá, passei a contar também para os possíveis amigos. Os que escutam com admiração merecem a minha amizade. Os que não disfarçam o enfado ganham cartão vermelho. Até agora ninguém foi aprovado no teste.
1:01 AM