sexta-feira, abril 23, 2004
SETE MEIA DOUS
por Adalberto Silva
Estou sem inspiração para escrever agora. O pior é o compromisso, raramente cumprido, de abastecer este espaço com um texto diário. Invejo os grandes cronistas, artífices das palavras, capazes de construir linhas e mais linhas sobre temas aparentemente insípidos, como um passeio na chuva, o arroz empapado servido no restaurante de terceira, uma placa de aluga-se, o silêncio do vizinho no elevador ou um pequeno inseto atraído pelo abajur. Eu, psicologicamente raso e com prosa de zagueiro-central, careço de uma boa história ou de tema interessante. Na falta de um ou outro, contudo, recuso-me a ficar inerte diante do cursor piscante do word e redijo este escrito monoparagrafal de 762 caracteres e, grato à liberdade que aqui tenho, ainda crio neologismo.
por Adalberto Silva
Estou sem inspiração para escrever agora. O pior é o compromisso, raramente cumprido, de abastecer este espaço com um texto diário. Invejo os grandes cronistas, artífices das palavras, capazes de construir linhas e mais linhas sobre temas aparentemente insípidos, como um passeio na chuva, o arroz empapado servido no restaurante de terceira, uma placa de aluga-se, o silêncio do vizinho no elevador ou um pequeno inseto atraído pelo abajur. Eu, psicologicamente raso e com prosa de zagueiro-central, careço de uma boa história ou de tema interessante. Na falta de um ou outro, contudo, recuso-me a ficar inerte diante do cursor piscante do word e redijo este escrito monoparagrafal de 762 caracteres e, grato à liberdade que aqui tenho, ainda crio neologismo.
5:38 PM
quarta-feira, abril 21, 2004
LIÇÃO AO ONZE ANOS
por Adalberto Silva
Gaetano e seu amigo sardento estão a postos no banquinho em frente ao prédio. Dentro de alguns minutos passará a atração principal das tardes da dupla, a morena de ancas largas, pernas musculosas, seios de atriz pornô americana e cabelos negros de índia.
Todos os dias os dois assistem, com os olhos cravados, a garota passar em direção à academia de ginástica, linda e perfumada, com toalha e garrafa d’água nas mãos. Depois brincam de supertrunfo ou bafo, discutem as performances no nintendinho e voltam ao banco de concreto para ver a musa, cansada e satisfeita, voltar para casa.
De segunda a sexta a história se repete. Jaciara, a corpulenta de 17 anos, nunca percebe a presença dos fedelhos.
O sardento tem um plano. Conta-o a Gaetano. Pretende se esconder no quarto da morena para vê-la nua. Entraria lá pendurado em algum cabo preso ao terraço do edifício. O parceiro acha a idéia genial e lembra de uma corda perdida na escada de incêndio. Ainda bem que garotos de onze anos são especialistas em traçar operações ousadas mas desistem facilmente de executá-las.
Tudo correu normalmente nos dias seguintes. A morena ia e vinha metida em trajes colantes e os dois garotos a espiá-la. Nos intervalos do desfile, pequenos vandalismos, partidas de videogame, escola, bafo, brigas, polícia e ladrão, futebol na rua, pedradas em gatos, desenho animado, heróis japoneses e outras coisas comuns ao cotidiano de meninos de onze anos. Só que algo, vindo não se sabe de onde, perturbou a alegre rotina de Gaetano como catapora contraída em férias escolares.
O moleque, coitado, passou a ter palpitações e pensamentos incessantes pela malhadora da tarde. Apaixonou-se por ela.
Seu amigo sardento e mais arteiro ri e diz que ele não tem a mínima chance, que a garota é grande e não vai dar bola a moleques pré-púberes (ele não usou este termo!!!) como eles. Gaetano discorda, afinal, vai à escola sozinho e de ônibus, lava os pratos depois do almoço e até faz serviço de banco.
Ele viu em uma revista, certa vez, algo sobre o fascínio das mulheres por flores. Descobriu, inclusive, que os homens de hoje em dia perderam o hábito de mandar flores.
Economizou durante uma semana renunciando ao lanche no recreio. Também faturou uns trocados pagando meia passagem e saltando pela porta de trás quando o cobrador deixava.
Na segunda-feira comprou um buquê de flores vermelhas. Às 17h20 estava no posto de observação, com o fiel capanga. Ela vem, passa e nem olha. Os dois vão embora, cada um para sua casa.
Gaetano toma banho e veste roupa de sair. O tênis que a mãe ainda está pagando, uma bermuda abaixo dos joelhos e camisa de estampa colorida. Não se esquece do boné e de passar perfume.
Uma hora depois ele retorna, desta vez sozinho e com flores nas mãos. Lá vem ela, rápida como sempre. Gaetano ajeita o boné e interrompe a marcha da morena. Entrega o buquê e a pede em namoro, cheio de confiança. Ela desenha um sorriso debochado nos lábios, pega as flores e as enfia entre a cabeça e o boné de Gaetano.
Sai gargalhando, os traseiros de rainha da bateria balançando ao olhos do moleque, aturdido como boxeador nocauteado. Nariz no chão do ringue, ele ouve o juiz iniciar a contagem. Vai se levantar zonzo, supercílio cortado, com uns dentes a menos e mais forte, bem mais forte.
por Adalberto Silva
Gaetano e seu amigo sardento estão a postos no banquinho em frente ao prédio. Dentro de alguns minutos passará a atração principal das tardes da dupla, a morena de ancas largas, pernas musculosas, seios de atriz pornô americana e cabelos negros de índia.
Todos os dias os dois assistem, com os olhos cravados, a garota passar em direção à academia de ginástica, linda e perfumada, com toalha e garrafa d’água nas mãos. Depois brincam de supertrunfo ou bafo, discutem as performances no nintendinho e voltam ao banco de concreto para ver a musa, cansada e satisfeita, voltar para casa.
De segunda a sexta a história se repete. Jaciara, a corpulenta de 17 anos, nunca percebe a presença dos fedelhos.
O sardento tem um plano. Conta-o a Gaetano. Pretende se esconder no quarto da morena para vê-la nua. Entraria lá pendurado em algum cabo preso ao terraço do edifício. O parceiro acha a idéia genial e lembra de uma corda perdida na escada de incêndio. Ainda bem que garotos de onze anos são especialistas em traçar operações ousadas mas desistem facilmente de executá-las.
Tudo correu normalmente nos dias seguintes. A morena ia e vinha metida em trajes colantes e os dois garotos a espiá-la. Nos intervalos do desfile, pequenos vandalismos, partidas de videogame, escola, bafo, brigas, polícia e ladrão, futebol na rua, pedradas em gatos, desenho animado, heróis japoneses e outras coisas comuns ao cotidiano de meninos de onze anos. Só que algo, vindo não se sabe de onde, perturbou a alegre rotina de Gaetano como catapora contraída em férias escolares.
O moleque, coitado, passou a ter palpitações e pensamentos incessantes pela malhadora da tarde. Apaixonou-se por ela.
Seu amigo sardento e mais arteiro ri e diz que ele não tem a mínima chance, que a garota é grande e não vai dar bola a moleques pré-púberes (ele não usou este termo!!!) como eles. Gaetano discorda, afinal, vai à escola sozinho e de ônibus, lava os pratos depois do almoço e até faz serviço de banco.
Ele viu em uma revista, certa vez, algo sobre o fascínio das mulheres por flores. Descobriu, inclusive, que os homens de hoje em dia perderam o hábito de mandar flores.
Economizou durante uma semana renunciando ao lanche no recreio. Também faturou uns trocados pagando meia passagem e saltando pela porta de trás quando o cobrador deixava.
Na segunda-feira comprou um buquê de flores vermelhas. Às 17h20 estava no posto de observação, com o fiel capanga. Ela vem, passa e nem olha. Os dois vão embora, cada um para sua casa.
Gaetano toma banho e veste roupa de sair. O tênis que a mãe ainda está pagando, uma bermuda abaixo dos joelhos e camisa de estampa colorida. Não se esquece do boné e de passar perfume.
Uma hora depois ele retorna, desta vez sozinho e com flores nas mãos. Lá vem ela, rápida como sempre. Gaetano ajeita o boné e interrompe a marcha da morena. Entrega o buquê e a pede em namoro, cheio de confiança. Ela desenha um sorriso debochado nos lábios, pega as flores e as enfia entre a cabeça e o boné de Gaetano.
Sai gargalhando, os traseiros de rainha da bateria balançando ao olhos do moleque, aturdido como boxeador nocauteado. Nariz no chão do ringue, ele ouve o juiz iniciar a contagem. Vai se levantar zonzo, supercílio cortado, com uns dentes a menos e mais forte, bem mais forte.
11:47 PM
segunda-feira, abril 19, 2004
O CABELO DA FÁTIMA
por Adalberto Silva
Morreu ontem o desempregado que ateou fogo ao próprio corpo em Brasília. José Antônio Andrade Souza queria falar com o presidente Lula. Para isso, vendeu o barraco onde morava por R$ 800,00 e embarcou na derradeira aventura. Agora, vai virar garoto propaganda da oposição ao governo e sua família não receberá nada por isso.
O Jornal Nacional de hoje não falou sobre o assunto. A tragédia do rapaz queimado já faz parte do passado. Durante uma notícia banal sobre a crise permanente da Palestina, um detalhe no cabelo da Fátima Bernardes chamou a minha atenção. Havia uma pequena mexa desalinhada, espetada para cima. Eram poucos fios, para ser mais exato. Quase ninguém deve ter reparado.
Aquela falha no penteado perfeito da jornalista, durante a exibição do jornal mais tecnologicamente requintado da TV brasileira, me pareceu absurda, no sentido sartreano do termo. Não entendo de existencialismo, mas o que digo deve fazer sentido, se não fizer, bem, então será absurdo. Voltando ao cabelo da Fátima, fiquei a refletir na instabilidade causada pelos fios rebeldes ao andamento do noticiário. Meia dúzia de fios tentando escapar daquela cabeça careta, fugir da imagem crível e por isso destituída de sensualidade da apresentadora.
Amanhã o cabelo dela estará bem alinhado. O cabeleireiro não vai vacilar. Tudo voltará à normalidade no Jornal Nacional, sempre certinho, asséptico, pronto para mostrar a seus milhões de telespectadores tragédias estreladas por desempregados.
por Adalberto Silva
Morreu ontem o desempregado que ateou fogo ao próprio corpo em Brasília. José Antônio Andrade Souza queria falar com o presidente Lula. Para isso, vendeu o barraco onde morava por R$ 800,00 e embarcou na derradeira aventura. Agora, vai virar garoto propaganda da oposição ao governo e sua família não receberá nada por isso.
O Jornal Nacional de hoje não falou sobre o assunto. A tragédia do rapaz queimado já faz parte do passado. Durante uma notícia banal sobre a crise permanente da Palestina, um detalhe no cabelo da Fátima Bernardes chamou a minha atenção. Havia uma pequena mexa desalinhada, espetada para cima. Eram poucos fios, para ser mais exato. Quase ninguém deve ter reparado.
Aquela falha no penteado perfeito da jornalista, durante a exibição do jornal mais tecnologicamente requintado da TV brasileira, me pareceu absurda, no sentido sartreano do termo. Não entendo de existencialismo, mas o que digo deve fazer sentido, se não fizer, bem, então será absurdo. Voltando ao cabelo da Fátima, fiquei a refletir na instabilidade causada pelos fios rebeldes ao andamento do noticiário. Meia dúzia de fios tentando escapar daquela cabeça careta, fugir da imagem crível e por isso destituída de sensualidade da apresentadora.
Amanhã o cabelo dela estará bem alinhado. O cabeleireiro não vai vacilar. Tudo voltará à normalidade no Jornal Nacional, sempre certinho, asséptico, pronto para mostrar a seus milhões de telespectadores tragédias estreladas por desempregados.
11:21 PM
domingo, abril 18, 2004
DOMINGO DE SOL
por Adalberto Silva
Porque hoje é domingo de sol os homens alisam seus carros, adolescentes de shortinhos curtos desfilam suadas e salgadas pelas ruas, atletas de fim-de-semana exibem as gorduras no calçadão da praia, falantes emitem músicas populares em volume alto e a atmosfera fica impregnada com o cheiro de churrasco. Porque hoje é domingo de sol as crianças ficam mais levadas, solteironas cuidam da beleza, genros visitam sogras e amantes ficam solitárias. Porque hoje é domingo de sol eu acordo às 11h, almoço às 14h30, assisto futebol e mais tarde vejo Fantástico.
Só porque hoje é domingo.
por Adalberto Silva
Porque hoje é domingo de sol os homens alisam seus carros, adolescentes de shortinhos curtos desfilam suadas e salgadas pelas ruas, atletas de fim-de-semana exibem as gorduras no calçadão da praia, falantes emitem músicas populares em volume alto e a atmosfera fica impregnada com o cheiro de churrasco. Porque hoje é domingo de sol as crianças ficam mais levadas, solteironas cuidam da beleza, genros visitam sogras e amantes ficam solitárias. Porque hoje é domingo de sol eu acordo às 11h, almoço às 14h30, assisto futebol e mais tarde vejo Fantástico.
Só porque hoje é domingo.
4:22 PM