sexta-feira, julho 17, 2009
Dezessete
Gosto de observar o vai e vem de gente enquanto espero o ônibus para ir trabalhar. Arrisco dizer que não existe rotina mais ordeira no meu bairro, ou quem sabe na cidade.
Eu normalmente chego ao ponto uns dez minutos antes do sujo e barulhento coletivo que me leva à repartição. Nesse meio tempo, passam por mim, como em uma parada militar, alguns personagens de que tanto vê-los fico com vontade de cumprimentar.
Lá perto fica o Salesiano, logo a maioria deles são estudantes do colégio. O cortejo começa, quase sempre, com uma menina gorducha, de uns 12 anos e seus um metro e meio de altura. A despeito da silhueta renascentista, ela anda a passos largos, apressada, porém elegantemente, com um olhar que mira o horizonte.
Em seguida vêm dois prováveis irmãos, que eu apelidei de O Gordo e o Magro. O Magro parece ser o mais novo e vem sempre na frente, transpirando preguiça. O Gordo, que na verdade é musculoso, parece ser mais seguro de si e às vezes surge acompanhado por alguma beldade adolescente.
Outra figura que nunca falta é a Boneca de Mármore. Aluna do Salesiano, deve ter uns 15, 16 anos. É loira, magra, com rosto clássico. Tem um olhar completamente indiferente, como se o caminho ordinário para a escola fosse uma passarela da Qualquer Coisa Fashion Week. O vermelho nas unhas das suas mãos, atestado de maturidade, alivia minha consciência quando devaneio sobre ela. Há outros personagens, que não vou citar agora. Não são nem mais nem menos importantes, e podem vir a ser assunto de outra crônica.
Às vezes o cortejo falha, como nesta manhã ensolarada de inverno. De longe eu via o Roqueiro chegando. Chamo-o assim porque o estudante está sempre com um allstar rabiscado e jeans bem velho. Na direção contrária passaram duas meninas da mesma escola, quase correndo. O roqueiro ensaiou o cumprimento a uma delas, foi agarrado pelo braço e obrigado a acompanhar as duas. Relutou um pouco mas deu meia volta e disparou no mesmo ritmo das colegas.
Eram sete da manhã. Na certa o Roqueiro iria se atrasar para a aula. Poderia até perder uma prova, quem sabe. Mas qual a importância disso, se naquele momento ele estava de braços dados a duas lindas meninas, felizes por estarem protegidas por ele.
Minhas vistas acompanharam o trio por quase um minuto, até meu ônibus aparecer. Fiquei o dia inteiro com saudades dos meus 17 anos, do Redley pichado, do jeans rasgado e das surpresas às sete da manhã.
11:17 PM
terça-feira, março 18, 2008
São Paulo
Dias atrás fui a São Paulo, passar um final de semana na companhia de amigos. Saí de lá com vontade de voltar logo, e quem sabe estabelecer moradia definitiva naquela cidade frenética, brutal e ainda assim sedutora.
A cidade deixou de recordação meia dúzia de imagens em minha mente. Na certa o tempo e outras experiências se encarregarão de apagar essas imagens da minha cabeça, com exceção de uma, desde já integrante do time das memórias que levarei para o leito de morte.
Não foi nada extraordinário, adianto. Aliás, foi um fato bastante vulgar, e não fosse meu sentimentalismo de ocasião a história nem ganharia essas linhas.
Vamos lá. Eu havia acabado de almoçar em um shopping center com meu anfitrião. Era mais ou menos meio-dia, e o lugar estava abarrotado de gente apressada. Nós também estávamos apressados e andávamos rápidos e truculentos como yuppies, porém felizes e não tão bem vestidos.
Ao passar próximo a um restaurante, fui alvejado pelo olhar delicado de uma funcionária. A moça deve ter entre 20 e 23 anos, é baixinha, branca e com um corpo bonito sem ser escultural. Ela estava com uma pasta preta, que presumo ser um cardápio, comprimida contra os seios.
Seu olhar veio acompanhado de um discreto sorriso. O impacto do seu golpe foi tão forte que fui obrigado a retribuir o aceno dos lábios. O lance todo não durou mais que cinco segundos, mas me deixou fora do chão por um bocado de tempo. Fiquei tonto. Por um momento os relógios pararam e não vi ninguém ao meu lado. Estava como o pugilista nocauteado, bambeando no ringue antes de cair para a derrota certeira.
Mas eu não estava ferido, nem derrotado. Pelo contrário. O olhar da mocinha me encheu de vivacidade. Deixou-me alegre, certo de que a vida vale a pena, mesmo que as coisas às vezes não aconteçam do jeito que a gente quer.
Dias atrás fui a São Paulo, passar um final de semana na companhia de amigos. Saí de lá com vontade de voltar logo, e quem sabe estabelecer moradia definitiva naquela cidade frenética, brutal e ainda assim sedutora.
A cidade deixou de recordação meia dúzia de imagens em minha mente. Na certa o tempo e outras experiências se encarregarão de apagar essas imagens da minha cabeça, com exceção de uma, desde já integrante do time das memórias que levarei para o leito de morte.
Não foi nada extraordinário, adianto. Aliás, foi um fato bastante vulgar, e não fosse meu sentimentalismo de ocasião a história nem ganharia essas linhas.
Vamos lá. Eu havia acabado de almoçar em um shopping center com meu anfitrião. Era mais ou menos meio-dia, e o lugar estava abarrotado de gente apressada. Nós também estávamos apressados e andávamos rápidos e truculentos como yuppies, porém felizes e não tão bem vestidos.
Ao passar próximo a um restaurante, fui alvejado pelo olhar delicado de uma funcionária. A moça deve ter entre 20 e 23 anos, é baixinha, branca e com um corpo bonito sem ser escultural. Ela estava com uma pasta preta, que presumo ser um cardápio, comprimida contra os seios.
Seu olhar veio acompanhado de um discreto sorriso. O impacto do seu golpe foi tão forte que fui obrigado a retribuir o aceno dos lábios. O lance todo não durou mais que cinco segundos, mas me deixou fora do chão por um bocado de tempo. Fiquei tonto. Por um momento os relógios pararam e não vi ninguém ao meu lado. Estava como o pugilista nocauteado, bambeando no ringue antes de cair para a derrota certeira.
Mas eu não estava ferido, nem derrotado. Pelo contrário. O olhar da mocinha me encheu de vivacidade. Deixou-me alegre, certo de que a vida vale a pena, mesmo que as coisas às vezes não aconteçam do jeito que a gente quer.
11:32 PM
quarta-feira, março 05, 2008
Não era só mais um Silva
O lugar onde trabalho é rico em personagens interessantes. Basta um pequeno exagero dramático nas características de cada um deles e eu teria um elenco prontinho para uma série de TV ou um longa-metragem, que seria uma mistura improvável de M.A.S.H com The Office.
Um dessas figuras é o Sr. Silva. Comandante de uma unidade de elite da polícia, é o estereótipo do militar patriota. Conserva o cabelo grisalho bem curto na nuca e com um pequeno topete em cima, tal qual o penteado do exército alemão. Por falar nisso, não esconde de ninguém que mantém a foto de Erwin Rommel como papel de parede no computador. Orgulhoso pela farda que veste e desconfiado dos civis que o cercam, é o tipo de pessoa que morreria por uma causa.
Enfezado com o que o incomoda e inimigo declarado da imprensa, não é de se estranhar que minha equipe de trabalho tenha enfrentado dificuldades com ele.
Fim de ano. Uma colega do trabalho confeccionou cartões de natal para distribuir aos vários comandantes, uma espécie de agradecimento à ajuda por eles prestada.
A mim coube a ingrata missão de entregar o cartão ao Sr. Silva. Fui à sala onde ele, todos os dias após o almoço, assiste ao noticiário esportivo. Dei bom dia e entreguei o cartão, esperando que no mínimo ele rasgasse-o na minha frente. Para meu espanto, ele se levantou do sofá com entusiasmo de menino e agradeceu pela lembrança, apertando a minha mão com vigor marcial.
Dias depois, encontrei Sr. Silva no mesmo local e no mesmo horário. Ciente de que ele é um estudioso da 2ª Guerra, fiz uma pergunta sobre o conflito. Não para puxar conversa, mas para extinguir minha dúvida mesmo. Isso rendeu um bate papo de quase uma hora.
A prosa foi boa, e apesar de autoridade, ele mostrou que não queria apenas uma platéia para aplaudir seus conhecimentos. Em vez disso, ouvia as minhas opiniões, embora eu não tivesse questionado em momento algum seu ponto de vista anti-americano. Para encerrar a palestra, pedi que indicasse alguns livros sobre o assunto.
Algumas horas depois, um soldado entrava na minha sala e deixava dois livros sobre a 2ª Guerra, um sobre as aventuras de um piloto da Luftwaffe; outro, sobre os Kamikazes.
Minha colega de trabalho olhou assustada, para depois se alegrar com o que finalmente seria a assinatura de um tratado de paz entre Sr. Silva e os assessores de imprensa da polícia.
No dia seguinte, para desgosto da minha parceira, ele se recusava a dar informações sobre uma operação policial. Pobres meninas. Não sabem que entre os homens a amizade pode coexistir com as diferentes convicções.
O lugar onde trabalho é rico em personagens interessantes. Basta um pequeno exagero dramático nas características de cada um deles e eu teria um elenco prontinho para uma série de TV ou um longa-metragem, que seria uma mistura improvável de M.A.S.H com The Office.
Um dessas figuras é o Sr. Silva. Comandante de uma unidade de elite da polícia, é o estereótipo do militar patriota. Conserva o cabelo grisalho bem curto na nuca e com um pequeno topete em cima, tal qual o penteado do exército alemão. Por falar nisso, não esconde de ninguém que mantém a foto de Erwin Rommel como papel de parede no computador. Orgulhoso pela farda que veste e desconfiado dos civis que o cercam, é o tipo de pessoa que morreria por uma causa.
Enfezado com o que o incomoda e inimigo declarado da imprensa, não é de se estranhar que minha equipe de trabalho tenha enfrentado dificuldades com ele.
Fim de ano. Uma colega do trabalho confeccionou cartões de natal para distribuir aos vários comandantes, uma espécie de agradecimento à ajuda por eles prestada.
A mim coube a ingrata missão de entregar o cartão ao Sr. Silva. Fui à sala onde ele, todos os dias após o almoço, assiste ao noticiário esportivo. Dei bom dia e entreguei o cartão, esperando que no mínimo ele rasgasse-o na minha frente. Para meu espanto, ele se levantou do sofá com entusiasmo de menino e agradeceu pela lembrança, apertando a minha mão com vigor marcial.
Dias depois, encontrei Sr. Silva no mesmo local e no mesmo horário. Ciente de que ele é um estudioso da 2ª Guerra, fiz uma pergunta sobre o conflito. Não para puxar conversa, mas para extinguir minha dúvida mesmo. Isso rendeu um bate papo de quase uma hora.
A prosa foi boa, e apesar de autoridade, ele mostrou que não queria apenas uma platéia para aplaudir seus conhecimentos. Em vez disso, ouvia as minhas opiniões, embora eu não tivesse questionado em momento algum seu ponto de vista anti-americano. Para encerrar a palestra, pedi que indicasse alguns livros sobre o assunto.
Algumas horas depois, um soldado entrava na minha sala e deixava dois livros sobre a 2ª Guerra, um sobre as aventuras de um piloto da Luftwaffe; outro, sobre os Kamikazes.
Minha colega de trabalho olhou assustada, para depois se alegrar com o que finalmente seria a assinatura de um tratado de paz entre Sr. Silva e os assessores de imprensa da polícia.
No dia seguinte, para desgosto da minha parceira, ele se recusava a dar informações sobre uma operação policial. Pobres meninas. Não sabem que entre os homens a amizade pode coexistir com as diferentes convicções.
10:55 AM
quarta-feira, agosto 22, 2007
Rock antigo
É engraçado como as opiniões mudam. Eu costumava criticar uns amigos que apreciavam rock antigo. Achava estúpido um bando de jovens idolatrar grupos da época dos seus pais, enquanto a modernidade fervilhava na forma de microfonias, poucos acordes e temáticas depressivas. Eu idolatrava o novo. O desconhecido. O efêmero. Minha sanha iconoclasta via o passado como uma página a ser virada e nunca mais relida e o agora como única salvação possível. Para mim, música antiga era coisa de espíritos velhos, mofados e com articulações e neurônios emperrados.
O tempo passou, e me mostrou que admirar o dia de ontem faz parte da ordem natural das coisas. Devia estar escrito nos livros de ciência: os humanos nascem, crescem, se reproduzem, morrem e buscam no passado a felicidade que não têm mais. Claro que não é nessa ordem.
Cheguei a essa conclusão ao ouvir na tarde de hoje Superunknown, disco do Soundgarden lançado em 1994. Conheci o disco na época em que foi lançado, por intermédio de um colega de escola que comprou o LP, duplo, se não me engano.
Naqueles bons tempos, no qual matávamos aulas no pátio à beira da piscina só para apreciar a beleza nórdica de uma professora de educação física, disco bom passava de mão em mão e gerava crias na forma de fitas Basf. Eu fui um dos que levou o LP e cumpriu o ritual da catequese roqueira de gravar fitinha, escrever à caneta o nome das músicas e depois quebrar a lingüeta, para evitar o risco de gravação acidental.
Tudo isso veio como um flashback, assim que as guitarras pesadas de “Let me drown” começaram a soar. Inventei de querer saber o porquê de estar ouvindo uma banda dos tempos do segundo grau com um mundo de novidades a um clique de distância, prontas para atualizar meus gostos e configurar meu perfil, deixando-me apto a ser um cara benquisto na confraria dos cults e antenados.
Quando analisei os últimos arquivos mp3 baixados, tomei um susto. Só coisa velha. Um disco do Happy Mondays de 1987; Darklands, do Jesus and Mary Chain, do mesmo ano; The Downward Spiral, do Nine Inch Nails, de 1994. Por que tanta velharia?
Fácil, pensei eu, fundamentado pelas 15 horinhas de Psicologia que tive em uma graduação e meia na universidade. Ouvir música do passado é a única forma possível de manter-se jovem, conectado a um tempo que não volta mais. Superunknown, e outros discos, são como máquinas do tempo capazes de me levar para os melhores momentos da adolescência, quando eu usava um Redley rabiscado, jeans rasgado e conversava a tarde inteira sobre Nirvana, Metallica, RATM, Ramones...
Bem, a teoria não explica o gosto dos meus amigos por músicas da época em que eles eram embriões, por isso é melhor ser refutada. Teoriazinha mixuruca. Durou um parágrafo, pouco mais que as bandinhas que aparecem e somem hoje em dia.
Eureca! Está explicado. Eu ouvi Superunknown hoje à tarde porque o disco é bom. Não é descartável como as farofas lançadas hoje em dia. Só por isso. Procurar explicação metafísica é pura falta do que fazer.
É engraçado como as opiniões mudam. Eu costumava criticar uns amigos que apreciavam rock antigo. Achava estúpido um bando de jovens idolatrar grupos da época dos seus pais, enquanto a modernidade fervilhava na forma de microfonias, poucos acordes e temáticas depressivas. Eu idolatrava o novo. O desconhecido. O efêmero. Minha sanha iconoclasta via o passado como uma página a ser virada e nunca mais relida e o agora como única salvação possível. Para mim, música antiga era coisa de espíritos velhos, mofados e com articulações e neurônios emperrados.
O tempo passou, e me mostrou que admirar o dia de ontem faz parte da ordem natural das coisas. Devia estar escrito nos livros de ciência: os humanos nascem, crescem, se reproduzem, morrem e buscam no passado a felicidade que não têm mais. Claro que não é nessa ordem.
Cheguei a essa conclusão ao ouvir na tarde de hoje Superunknown, disco do Soundgarden lançado em 1994. Conheci o disco na época em que foi lançado, por intermédio de um colega de escola que comprou o LP, duplo, se não me engano.
Naqueles bons tempos, no qual matávamos aulas no pátio à beira da piscina só para apreciar a beleza nórdica de uma professora de educação física, disco bom passava de mão em mão e gerava crias na forma de fitas Basf. Eu fui um dos que levou o LP e cumpriu o ritual da catequese roqueira de gravar fitinha, escrever à caneta o nome das músicas e depois quebrar a lingüeta, para evitar o risco de gravação acidental.
Tudo isso veio como um flashback, assim que as guitarras pesadas de “Let me drown” começaram a soar. Inventei de querer saber o porquê de estar ouvindo uma banda dos tempos do segundo grau com um mundo de novidades a um clique de distância, prontas para atualizar meus gostos e configurar meu perfil, deixando-me apto a ser um cara benquisto na confraria dos cults e antenados.
Quando analisei os últimos arquivos mp3 baixados, tomei um susto. Só coisa velha. Um disco do Happy Mondays de 1987; Darklands, do Jesus and Mary Chain, do mesmo ano; The Downward Spiral, do Nine Inch Nails, de 1994. Por que tanta velharia?
Fácil, pensei eu, fundamentado pelas 15 horinhas de Psicologia que tive em uma graduação e meia na universidade. Ouvir música do passado é a única forma possível de manter-se jovem, conectado a um tempo que não volta mais. Superunknown, e outros discos, são como máquinas do tempo capazes de me levar para os melhores momentos da adolescência, quando eu usava um Redley rabiscado, jeans rasgado e conversava a tarde inteira sobre Nirvana, Metallica, RATM, Ramones...
Bem, a teoria não explica o gosto dos meus amigos por músicas da época em que eles eram embriões, por isso é melhor ser refutada. Teoriazinha mixuruca. Durou um parágrafo, pouco mais que as bandinhas que aparecem e somem hoje em dia.
Eureca! Está explicado. Eu ouvi Superunknown hoje à tarde porque o disco é bom. Não é descartável como as farofas lançadas hoje em dia. Só por isso. Procurar explicação metafísica é pura falta do que fazer.
12:00 AM
quarta-feira, agosto 15, 2007
Abstêmio
A vida é muito dura quando se é abstêmio. Escrever uma crônica, compor uma música ou esperar por um amigo são tarefas ingratas sem a companhia incandescente de um cigarro. Encrencas como declamar um poema em público, declarar-se para uma morena ou mandar o chefe às favas parecem brincadeiras de criança quando temperadas pelo sabor traiçoeiro do álcool.
Afirmo isso com propriedade, porque não fumo, e bebo com moderação de dar inveja aos menos controlados. À vezes até me assusto com minha preocupação com a forma física, na medida que um dos maiores sanguinários da humanidade também pregava os benefícios de uma vida sem tabaco e com baixas taxas de colesterol. Felizmente, não há pesquisa que comprove a relação entre hábitos saudáveis e
comportamentos totalitários. Pelo menos por enquanto...
Mas isso é assunto para outra crônica.
O que me perturba agora, como escrevi acima, é a dificuldade de desbravar o capinzal espinhento da vida sem um scotch na algibeira e um marlboro entre os dedos. Pensamentos imperfeitos são levados para longe pela primeira golada. Ansiedade, preocupação ou tédio perdem força assim que o batalhão de substâncias químicas contidas no
cigarro entra na corrente sanguínea.
Dias desses fui dar um passeio pela noite de Vitória. Fomos para um lugar cheio de barzinhos, situado num bairro de classe alta. É o tipo de lugar onde os mauricinhos vão para exibir os carros e azarar as patricinhas; as patricinhas vão para mostrar os decotes, as caras maquiadas e dar foras nos proletários; os proletários vão para exibir os chevettes rebaixados, desejar as patricinhas e tentar se dar bem com as barangas; e as barangas vão para esnobar os proletários, desejar os playboys e invejar os jeans de 500 reais das patricinhas.
Em meio a esta fauna fedida estava eu. Sem uma gota de álcool no sangue. A mesma rigidez de espírito que me impediu de beber para estar às sete horas do dia seguinte no trabalho produziu na minha mente os pensamentos mais sórdidos. Mas isso é assunto para outra crônica, porque a razão dessas linhas foi uma pegadinha do destino ocorrida na manhã de hoje. Vou contar em poucas linhas.
Há dias estou interessado por uma menina da academia. Diante de certa receptividade, puxei assunto com ela. Descobri nome, gostos, atividades e que tem namorado. Só que a amizade evoluiu, a despeito de um certo desinteresse da minha parte, afinal, como é comprometida, desisti da investidura. E a cada dia a amizade aumentava. Ela falava da faculdade, da facilidade em ganhar peso, do sacrifício dos abdominais. E me ouvia falar dos tempos da faculdade, da dificuldade em ganhar peso, do sacrifício dos abdominais. Então bateu. Meu interesse pela moça de 24 anos, bonita mas que não pára trânsito, que nunca vi conversando com nenhuma integrante da confraria-de-vendedoras-de-shopping-saradas-e-chicleteiras, voltou com mais força.
O golpe fatal veio quando ela me cumprimentou, ao chegar à academia, e reclamou que eu não havia a esperado para ir embora no dia seguinte. Conversamos, treinamos e para minha alegria, terminamos quase na mesma hora. Eu pude esperá-la.
Caminhamos e conversamos. Ela não citou o namorado. Estaria solteira? Falou do vício incontrolável por chocolate. Eu ouvi atento e feliz. Então ela apertou o botão vermelho e jogou napalm nas minhas ilusões. Ela falou do namorado, e que estavam juntos há um mês. Em lua de mel.
You smell that? Do you smell that? Napalm, son. Nothing else in the world smells like that. I love the smell of napalm in the morning.
I hate de smell of napalm in tha morning.
Acho que os óculos escuros disfarçaram meu dissabor. Caminhei de cabeça baixa. Quis um gole, quis um trago. Tirei a camisa pois fazia sol. Era meio dia. Ergui um pouco a cabeça e vi um céu azul cheio de chumaços de algodão. Daí lembrei do Camus, que um dia disse: “para corrigir uma indiferença natural, achei-me colocado a meia distância entra a miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que tudo está bem debaixo do sol e na história. O sol ensinou-me que a história não é tudo.”
Bola pra frente.
A vida é muito dura quando se é abstêmio. Escrever uma crônica, compor uma música ou esperar por um amigo são tarefas ingratas sem a companhia incandescente de um cigarro. Encrencas como declamar um poema em público, declarar-se para uma morena ou mandar o chefe às favas parecem brincadeiras de criança quando temperadas pelo sabor traiçoeiro do álcool.
Afirmo isso com propriedade, porque não fumo, e bebo com moderação de dar inveja aos menos controlados. À vezes até me assusto com minha preocupação com a forma física, na medida que um dos maiores sanguinários da humanidade também pregava os benefícios de uma vida sem tabaco e com baixas taxas de colesterol. Felizmente, não há pesquisa que comprove a relação entre hábitos saudáveis e
comportamentos totalitários. Pelo menos por enquanto...
Mas isso é assunto para outra crônica.
O que me perturba agora, como escrevi acima, é a dificuldade de desbravar o capinzal espinhento da vida sem um scotch na algibeira e um marlboro entre os dedos. Pensamentos imperfeitos são levados para longe pela primeira golada. Ansiedade, preocupação ou tédio perdem força assim que o batalhão de substâncias químicas contidas no
cigarro entra na corrente sanguínea.
Dias desses fui dar um passeio pela noite de Vitória. Fomos para um lugar cheio de barzinhos, situado num bairro de classe alta. É o tipo de lugar onde os mauricinhos vão para exibir os carros e azarar as patricinhas; as patricinhas vão para mostrar os decotes, as caras maquiadas e dar foras nos proletários; os proletários vão para exibir os chevettes rebaixados, desejar as patricinhas e tentar se dar bem com as barangas; e as barangas vão para esnobar os proletários, desejar os playboys e invejar os jeans de 500 reais das patricinhas.
Em meio a esta fauna fedida estava eu. Sem uma gota de álcool no sangue. A mesma rigidez de espírito que me impediu de beber para estar às sete horas do dia seguinte no trabalho produziu na minha mente os pensamentos mais sórdidos. Mas isso é assunto para outra crônica, porque a razão dessas linhas foi uma pegadinha do destino ocorrida na manhã de hoje. Vou contar em poucas linhas.
Há dias estou interessado por uma menina da academia. Diante de certa receptividade, puxei assunto com ela. Descobri nome, gostos, atividades e que tem namorado. Só que a amizade evoluiu, a despeito de um certo desinteresse da minha parte, afinal, como é comprometida, desisti da investidura. E a cada dia a amizade aumentava. Ela falava da faculdade, da facilidade em ganhar peso, do sacrifício dos abdominais. E me ouvia falar dos tempos da faculdade, da dificuldade em ganhar peso, do sacrifício dos abdominais. Então bateu. Meu interesse pela moça de 24 anos, bonita mas que não pára trânsito, que nunca vi conversando com nenhuma integrante da confraria-de-vendedoras-de-shopping-saradas-e-chicleteiras, voltou com mais força.
O golpe fatal veio quando ela me cumprimentou, ao chegar à academia, e reclamou que eu não havia a esperado para ir embora no dia seguinte. Conversamos, treinamos e para minha alegria, terminamos quase na mesma hora. Eu pude esperá-la.
Caminhamos e conversamos. Ela não citou o namorado. Estaria solteira? Falou do vício incontrolável por chocolate. Eu ouvi atento e feliz. Então ela apertou o botão vermelho e jogou napalm nas minhas ilusões. Ela falou do namorado, e que estavam juntos há um mês. Em lua de mel.
You smell that? Do you smell that? Napalm, son. Nothing else in the world smells like that. I love the smell of napalm in the morning.
I hate de smell of napalm in tha morning.
Acho que os óculos escuros disfarçaram meu dissabor. Caminhei de cabeça baixa. Quis um gole, quis um trago. Tirei a camisa pois fazia sol. Era meio dia. Ergui um pouco a cabeça e vi um céu azul cheio de chumaços de algodão. Daí lembrei do Camus, que um dia disse: “para corrigir uma indiferença natural, achei-me colocado a meia distância entra a miséria e o sol. A miséria impediu-me de crer que tudo está bem debaixo do sol e na história. O sol ensinou-me que a história não é tudo.”
Bola pra frente.
8:58 PM
quinta-feira, julho 26, 2007
Estrangeiro
Uma colega do trabalho me perguntou quando seria o jogo da seleção brasileira feminina de futebol. Eu respondi que não sabia. Ela retrucou e disse que eu, por ser jornalista, teria a obrigação de saber a programação dos jogos pan-americanos. “Mas eu não sou brasileiro”, disparei meio sem pensar.
A discussão terminou com sorrisos das duas partes. Mas a frase que a encerrou, ao contrário do que minha interlocutora achou, não foi dita da boca pra fora. Às vezes, e não tão às vezes assim, sinto-me como um estrangeiro. É uma sensação de estranhamento, como se eu não fizesse parte do universo ao meu redor. Sabe a sensação de estar em uma festa reservada, com uns dez, doze convidados, e não conhecer ninguém. De tão absurda, nem é preciso ter passado pela situação para sentir o desconforto. Eu olho para um lado, pra outro, e não vejo a porta da sala. A única alternativa é esperar o anfitrião anunciar o fim da festa para ir embora.
A sensação vem como um arrepio, algumas vezes só me belisca e vai embora. Em outras, estaciona feito visita chata, em estadia que dura no máximo alguns minutos, até ser expulsa pelas incumbências cotidianas.
Não se assustem, meus três leitores e meio. Não vou matar um árabe e culpar o sol, como o anti-herói Meursault. Muito menos abraçar o niilismo, desprender-me de tudo e fazer de um barril minha moradia, como o filósofo cínico Diógenes de Sínope. Não tenho coragem para tanto.
Quem sabe daqui uns anos eu encontre meu passaporte, ou a porta de saída na festa estranha. Tem gente que faz análise, outros enchem a cara. Não sei se encontram a resposta. Eu prefiro a dúvida, a companhia sombria do estranhamento. Porque pelo menos tenho assunto para exercitar meu português ruim.
Uma colega do trabalho me perguntou quando seria o jogo da seleção brasileira feminina de futebol. Eu respondi que não sabia. Ela retrucou e disse que eu, por ser jornalista, teria a obrigação de saber a programação dos jogos pan-americanos. “Mas eu não sou brasileiro”, disparei meio sem pensar.
A discussão terminou com sorrisos das duas partes. Mas a frase que a encerrou, ao contrário do que minha interlocutora achou, não foi dita da boca pra fora. Às vezes, e não tão às vezes assim, sinto-me como um estrangeiro. É uma sensação de estranhamento, como se eu não fizesse parte do universo ao meu redor. Sabe a sensação de estar em uma festa reservada, com uns dez, doze convidados, e não conhecer ninguém. De tão absurda, nem é preciso ter passado pela situação para sentir o desconforto. Eu olho para um lado, pra outro, e não vejo a porta da sala. A única alternativa é esperar o anfitrião anunciar o fim da festa para ir embora.
A sensação vem como um arrepio, algumas vezes só me belisca e vai embora. Em outras, estaciona feito visita chata, em estadia que dura no máximo alguns minutos, até ser expulsa pelas incumbências cotidianas.
Não se assustem, meus três leitores e meio. Não vou matar um árabe e culpar o sol, como o anti-herói Meursault. Muito menos abraçar o niilismo, desprender-me de tudo e fazer de um barril minha moradia, como o filósofo cínico Diógenes de Sínope. Não tenho coragem para tanto.
Quem sabe daqui uns anos eu encontre meu passaporte, ou a porta de saída na festa estranha. Tem gente que faz análise, outros enchem a cara. Não sei se encontram a resposta. Eu prefiro a dúvida, a companhia sombria do estranhamento. Porque pelo menos tenho assunto para exercitar meu português ruim.
10:19 PM
sexta-feira, julho 13, 2007
Onde mora o pipoqueiro?
Hoje lembrei de uma coisa que me inquietava quando eu era criança. Eu não conseguia entender de onde vinham os pipoqueiros que trabalhavam nas pracinhas, parques de diversão e festas juninas. Minha sabedoria infantil, não sei por que, dizia que eles moravam bem longe dali, de onde alegravam a garotada com a mistura mágica de milho, óleo e sal, e não poderiam carregar o carrinho à pé e muito menos colocá-lo dentro de um ônibus, como faziam os meninos que vendiam picolés na praia.
Às vezes, na fila da roda gigante ou do bate-bate, caía em meditação em busca da resposta. Meus pensamentos eram impreterivelmente interrompidos por um adulto querendo saber o que eu estava pensando – a mais angustiante pergunta desde os tempos de Caim e Abel. Eu voltava ao chão tão ignorante quanto antes e me concentrava nas coisas realmente importantes para um menino de oito anos.
Os mistérios dessa fase da vida foram diminuindo na mesma velocidade em que o número do meu sapato aumentava. Era a luz da ciência e da razão bombardeando minha alma e exterminando as fantasias da idade das formas perfeitas. Não era a voz de Jerry Lewis que mudava de uma hora pra outra e sim a dublagem. O foguete que subia garboso em direção ao espaço não passava de um estilingue descartável para arremessar uma nave de formas nada atraentes. João Paulo II não falava todas as línguas do mundo.
Minhas enciclopédias amigas só não me ensinaram onde os pipoqueiros moravam. Talvez eu não tenha procurado o verbete certo. Ainda bem que eu guardava a dúvida só pra mim, ou algum adulto – sempre eles, caçadores de ilusões – teria me dito que o pipoqueiro mora longe de festa e precisa caminhar um bocado para ganhar uns metais. “É por isso que eu nunca vi pipoqueiro gordo”, eu diria, e iria dormir o sono dos levados, crescer, estudar, me formar, dormir, acordar, malhar, voltar pra casa e ver indiferente um sofrido senhor às portas da terceira idade empurrar um carrinho de picolé amarelo.
Como a sabedoria dos mais velhos não dissipou a velha dúvida, ela voltou a mim diante da visão do combalido empreendedor. De onde vinha aquele homem magro e de cara enrugada? Não havia parque de diversões ou circo por perto, logo ele não desapareceria por encanto quando o espetáculo terminasse. Nenhuma teoria salvadora pairou sobre minha cabeça endurecida. Só a verdade, bruta como uma cusparada. Ele mora longe e andou bastante. Batalha de sol a sol quando deveria colher os frutos de uma existência digna. Maldita imprevidência social.
A frente do carrinho em direção à praia dizia que ele começava sua jornada. As nuvens cinzas lá no alto anunciavam a féria minguada. Segui meu caminho e agradeci aos céus por ninguém ter me falado, na aurora da minha vida, o quanto o pipoqueiro (e o vendedor de milho, algodão doce, maça do amor) sofre para alegrar a vida da gente.
Hoje lembrei de uma coisa que me inquietava quando eu era criança. Eu não conseguia entender de onde vinham os pipoqueiros que trabalhavam nas pracinhas, parques de diversão e festas juninas. Minha sabedoria infantil, não sei por que, dizia que eles moravam bem longe dali, de onde alegravam a garotada com a mistura mágica de milho, óleo e sal, e não poderiam carregar o carrinho à pé e muito menos colocá-lo dentro de um ônibus, como faziam os meninos que vendiam picolés na praia.
Às vezes, na fila da roda gigante ou do bate-bate, caía em meditação em busca da resposta. Meus pensamentos eram impreterivelmente interrompidos por um adulto querendo saber o que eu estava pensando – a mais angustiante pergunta desde os tempos de Caim e Abel. Eu voltava ao chão tão ignorante quanto antes e me concentrava nas coisas realmente importantes para um menino de oito anos.
Os mistérios dessa fase da vida foram diminuindo na mesma velocidade em que o número do meu sapato aumentava. Era a luz da ciência e da razão bombardeando minha alma e exterminando as fantasias da idade das formas perfeitas. Não era a voz de Jerry Lewis que mudava de uma hora pra outra e sim a dublagem. O foguete que subia garboso em direção ao espaço não passava de um estilingue descartável para arremessar uma nave de formas nada atraentes. João Paulo II não falava todas as línguas do mundo.
Minhas enciclopédias amigas só não me ensinaram onde os pipoqueiros moravam. Talvez eu não tenha procurado o verbete certo. Ainda bem que eu guardava a dúvida só pra mim, ou algum adulto – sempre eles, caçadores de ilusões – teria me dito que o pipoqueiro mora longe de festa e precisa caminhar um bocado para ganhar uns metais. “É por isso que eu nunca vi pipoqueiro gordo”, eu diria, e iria dormir o sono dos levados, crescer, estudar, me formar, dormir, acordar, malhar, voltar pra casa e ver indiferente um sofrido senhor às portas da terceira idade empurrar um carrinho de picolé amarelo.
Como a sabedoria dos mais velhos não dissipou a velha dúvida, ela voltou a mim diante da visão do combalido empreendedor. De onde vinha aquele homem magro e de cara enrugada? Não havia parque de diversões ou circo por perto, logo ele não desapareceria por encanto quando o espetáculo terminasse. Nenhuma teoria salvadora pairou sobre minha cabeça endurecida. Só a verdade, bruta como uma cusparada. Ele mora longe e andou bastante. Batalha de sol a sol quando deveria colher os frutos de uma existência digna. Maldita imprevidência social.
A frente do carrinho em direção à praia dizia que ele começava sua jornada. As nuvens cinzas lá no alto anunciavam a féria minguada. Segui meu caminho e agradeci aos céus por ninguém ter me falado, na aurora da minha vida, o quanto o pipoqueiro (e o vendedor de milho, algodão doce, maça do amor) sofre para alegrar a vida da gente.
10:48 PM
quarta-feira, abril 25, 2007
Keyla
“Mas que moleza, eihn!”, exclamou a loira, ao me ver guardando meio desajeitado uma anilha de dez quilos. Era assim que ela me cumprimentava, uma alternativa divertida à caretice do bom-dia e ao mesmo tempo uma provocação à minha virilidade. Embora eu estivesse acostumado com o jeito marrento da moça, estranhei a presença da instrutora no horário da manhã, o preferido das cinquentonas e dos anti-sociais da academia como eu.
Resolvi meu impasse com a anilha e pude erguer o corpo para retribuir o cumprimento. Só então constatei como ela estava perto de mim. Um palmo de distância, ou menos. A instrutora, Keyla é o nome dela, me fitava com seu rosto misterioso que um dia desvendarei. É uma expressão grave sem ser solene, dura e lasciva em medidas iguais. Seus olhos verdes miraram os meus e desceram em direção ao meu tórax, subindo e encontrando seus colegas castanhos novamente.
Fiquei ali, a olhar aqueles olhos e com vontade de enlaçá-la pela cintura, comprimir meu corpo contra o dela e beijá-la sem medo. Decifrar, só com olhares, os enigmas guardados no seu rosto banal, sem me importar se eles não forem agradáveis como os poucos segundos face a face com ela.
Cumprimentei-a com um “oi” tão competente quanto meu trato com a anilha de dez e a vi partir para a esteira ergométrica. “Decifro-te”, disse para mim mesmo, antes de iniciar a série de abdominais.
“Mas que moleza, eihn!”, exclamou a loira, ao me ver guardando meio desajeitado uma anilha de dez quilos. Era assim que ela me cumprimentava, uma alternativa divertida à caretice do bom-dia e ao mesmo tempo uma provocação à minha virilidade. Embora eu estivesse acostumado com o jeito marrento da moça, estranhei a presença da instrutora no horário da manhã, o preferido das cinquentonas e dos anti-sociais da academia como eu.
Resolvi meu impasse com a anilha e pude erguer o corpo para retribuir o cumprimento. Só então constatei como ela estava perto de mim. Um palmo de distância, ou menos. A instrutora, Keyla é o nome dela, me fitava com seu rosto misterioso que um dia desvendarei. É uma expressão grave sem ser solene, dura e lasciva em medidas iguais. Seus olhos verdes miraram os meus e desceram em direção ao meu tórax, subindo e encontrando seus colegas castanhos novamente.
Fiquei ali, a olhar aqueles olhos e com vontade de enlaçá-la pela cintura, comprimir meu corpo contra o dela e beijá-la sem medo. Decifrar, só com olhares, os enigmas guardados no seu rosto banal, sem me importar se eles não forem agradáveis como os poucos segundos face a face com ela.
Cumprimentei-a com um “oi” tão competente quanto meu trato com a anilha de dez e a vi partir para a esteira ergométrica. “Decifro-te”, disse para mim mesmo, antes de iniciar a série de abdominais.
8:25 PM
segunda-feira, fevereiro 26, 2007
Dois braços
Tenho a capacidade de tirar coisas boas de situações aparentemente ingratas. Andar de ônibus é uma delas. O caminho para o trabalho é um desfile de beldades. Tem a morena esguia do Tribunal de Justiça, a baixinha de seios fartos sexy e falante e uma loira quase perfeita do alto dos seus saltos, não fosse o vestido curto a cobrir-lhe as vergonhas. Essa última, desconfio, tem a função de motivar os colegas do trabalho. Uma circulada pelo escritório e pronto: sonolentos ficam ativados, relapsos rendem mais e a turma do cafezinho volta para seus lugares, iludidos de que o trabalho duro os compensará com os carinhos da moça.
Numa dessas manhãs entrou uma moça e sentou-se ao meu lado. Era uma loira, mais de vinte e cinco, roupas da moda, óculos escuros caros no rosto e aquele jeito de mulher que nunca me daria uma chance. Ela sentou-se e colou seu braço contra o meu. Fôssemos corpulentos, não haveria nada de errado nisso, só que éramos dois magros, e o contato não era inevitável.
Eu lia uma revista de negócios e por um momento me esqueci das franquias mais promissoras para aproveitar tão íntimo contato. Eu podia sentir a maciez da pele. Temia que ela se desse conta do toque e afastasse o braço meio centímetro para a esquerda. Resolvi deixar a leitura de lado e desfrutar do pouco que a moça me oferecia. Cada curva, cada solavanco do veículo eram uma fonte de prazer. Os quilômetros avançaram e a ternura tomou conta da lascívia inicial.
Voltei para a revista, dono da situação. A moça era minha.
O enfado chegou antes do ônibus cruzar a terceira-ponte. A quentura da moça era uma vaga lembrança em meu braço. Seus tornozelos, suas mãos, seu perfil, nada mais me interessava. Hora de descartá-la. Não tive esse trabalho. Como veio ela se foi. Não a vi no outro dia, na outra semana nem um mês depois.
Quem sabe um dia nos encontramos, numa boate, talvez, onde ela vai ignorar sem nenhum pudor o affair que tivemos.
Tenho a capacidade de tirar coisas boas de situações aparentemente ingratas. Andar de ônibus é uma delas. O caminho para o trabalho é um desfile de beldades. Tem a morena esguia do Tribunal de Justiça, a baixinha de seios fartos sexy e falante e uma loira quase perfeita do alto dos seus saltos, não fosse o vestido curto a cobrir-lhe as vergonhas. Essa última, desconfio, tem a função de motivar os colegas do trabalho. Uma circulada pelo escritório e pronto: sonolentos ficam ativados, relapsos rendem mais e a turma do cafezinho volta para seus lugares, iludidos de que o trabalho duro os compensará com os carinhos da moça.
Numa dessas manhãs entrou uma moça e sentou-se ao meu lado. Era uma loira, mais de vinte e cinco, roupas da moda, óculos escuros caros no rosto e aquele jeito de mulher que nunca me daria uma chance. Ela sentou-se e colou seu braço contra o meu. Fôssemos corpulentos, não haveria nada de errado nisso, só que éramos dois magros, e o contato não era inevitável.
Eu lia uma revista de negócios e por um momento me esqueci das franquias mais promissoras para aproveitar tão íntimo contato. Eu podia sentir a maciez da pele. Temia que ela se desse conta do toque e afastasse o braço meio centímetro para a esquerda. Resolvi deixar a leitura de lado e desfrutar do pouco que a moça me oferecia. Cada curva, cada solavanco do veículo eram uma fonte de prazer. Os quilômetros avançaram e a ternura tomou conta da lascívia inicial.
Voltei para a revista, dono da situação. A moça era minha.
O enfado chegou antes do ônibus cruzar a terceira-ponte. A quentura da moça era uma vaga lembrança em meu braço. Seus tornozelos, suas mãos, seu perfil, nada mais me interessava. Hora de descartá-la. Não tive esse trabalho. Como veio ela se foi. Não a vi no outro dia, na outra semana nem um mês depois.
Quem sabe um dia nos encontramos, numa boate, talvez, onde ela vai ignorar sem nenhum pudor o affair que tivemos.
11:52 PM
sábado, setembro 24, 2005
O CARREGADOR
por Adalberto Silva
O carregador de compras acompanhava mais uma cliente. Branca como a Nicole Kidman, cabelos lisos e castanhos, recém chegada à casa dos vinte, ela ouvia com bem-disfarçado interesse a palestra do rapaz. Este não parava de falar enquanto empurrava o carrinho cheio de gêneros de primeira necessidade. Sabia que os cerca de 300 metros entre o supermercado e a casa da moça seriam consumidos tão rápido quanto o salário mínimo que recebia todo mês. Tinha pouco tempo para impressionar a mais bela entre todas com quem dividira os passos nesses dois meses de trabalho.
Já havia carregado compras de umas trintonas malhadas, hidratadas e desimpedidas, muitas das quais o tratavam pelo nome, mas os grilhões da resignação e o medo de algo bater nos ouvidos do encarregado o impediam de articular uma paquera. Agora não, não havia perigo de demissão ou voz interior apitando um “coloque-se no seu lugar” capazes de frear sua investida contra a universitária do interior, bisneta de italianos, estudante de Enfermagem e amante de polenta. As intenções do carregador eram bem diferentes das que reservava às balzaquianas em roupas de ginástica. Ele elegeu aquela menina de short jeans desbotado, blusa de malha rosa e sandália baixa para namorada, queria tomar sorvete com ela no shopping e desfilá-la na pracinha do bairro. Só faltava ela aceitar o posto.
- Eu venho aqui direto, tem uma cliente que liga e o gerente já sabe tudo que ela compra, disse animado, recebendo em troca um sorriso cordial e um pra-cima e pra-baixo com a cabeça.
E ele falava. Falava dos colegas indolentes, da habilidade em embalar as compras, de alfaces, tomates e sorvetes de morango, da fragilidade dos ovos e do peso dos garrafões de água. Do alto da sua sabedoria de supletivo, omitiu sobre as donas-de-casa folgadas que nunca lhe davam gorjeta. E ela ouvia, sem enfado nem empolgação. Só abriu a boca para soltar o contundente “é aqui”, que soou para nosso amigo como o grito eufórico da torcida soa para o último corredor quando o primeiro termina a prova dos 200 metros rasos. Como o corredor, ele não reduziu o passo diante da derrota iminente. Continuou a prosa até o “muito obrigado”, que para ele, e ele disse isso mais tarde a um colega do trabalho, caiu como o apito final do juiz impugnando as esperanças do seu time de futebol.
Voltou para o supermercado derrotado, embora achasse que havia jogado bem e só pecara nas finalizações.
- Ela me deu o maior mole, rapaz, cê tinha que ver!, gabou-se ao amigo, com quem esperava o ônibus das 22h30.
por Adalberto Silva
O carregador de compras acompanhava mais uma cliente. Branca como a Nicole Kidman, cabelos lisos e castanhos, recém chegada à casa dos vinte, ela ouvia com bem-disfarçado interesse a palestra do rapaz. Este não parava de falar enquanto empurrava o carrinho cheio de gêneros de primeira necessidade. Sabia que os cerca de 300 metros entre o supermercado e a casa da moça seriam consumidos tão rápido quanto o salário mínimo que recebia todo mês. Tinha pouco tempo para impressionar a mais bela entre todas com quem dividira os passos nesses dois meses de trabalho.
Já havia carregado compras de umas trintonas malhadas, hidratadas e desimpedidas, muitas das quais o tratavam pelo nome, mas os grilhões da resignação e o medo de algo bater nos ouvidos do encarregado o impediam de articular uma paquera. Agora não, não havia perigo de demissão ou voz interior apitando um “coloque-se no seu lugar” capazes de frear sua investida contra a universitária do interior, bisneta de italianos, estudante de Enfermagem e amante de polenta. As intenções do carregador eram bem diferentes das que reservava às balzaquianas em roupas de ginástica. Ele elegeu aquela menina de short jeans desbotado, blusa de malha rosa e sandália baixa para namorada, queria tomar sorvete com ela no shopping e desfilá-la na pracinha do bairro. Só faltava ela aceitar o posto.
- Eu venho aqui direto, tem uma cliente que liga e o gerente já sabe tudo que ela compra, disse animado, recebendo em troca um sorriso cordial e um pra-cima e pra-baixo com a cabeça.
E ele falava. Falava dos colegas indolentes, da habilidade em embalar as compras, de alfaces, tomates e sorvetes de morango, da fragilidade dos ovos e do peso dos garrafões de água. Do alto da sua sabedoria de supletivo, omitiu sobre as donas-de-casa folgadas que nunca lhe davam gorjeta. E ela ouvia, sem enfado nem empolgação. Só abriu a boca para soltar o contundente “é aqui”, que soou para nosso amigo como o grito eufórico da torcida soa para o último corredor quando o primeiro termina a prova dos 200 metros rasos. Como o corredor, ele não reduziu o passo diante da derrota iminente. Continuou a prosa até o “muito obrigado”, que para ele, e ele disse isso mais tarde a um colega do trabalho, caiu como o apito final do juiz impugnando as esperanças do seu time de futebol.
Voltou para o supermercado derrotado, embora achasse que havia jogado bem e só pecara nas finalizações.
- Ela me deu o maior mole, rapaz, cê tinha que ver!, gabou-se ao amigo, com quem esperava o ônibus das 22h30.
2:08 AM