sexta-feira, abril 30, 2004

SERENATA INTERROMPIDA
por Adalberto Silva

Anailton entra no ônibus rumo à batalha. Auxiliar de escritório, um salário e meio por mês, flamenguista não-praticante, alma e físico de pusilânime, nunca alimentou grandes sonhos ou paixões. Há algumas semanas, porém, uma moça magrinha e branquela esquentou a sua rotina.

Todos os dias, três pontos depois de Anailton, ela embarca, uniformizada, cheirosa e fitada pelo recém apaixonado trabalhador. Vez ou outra sentam-se lado a lado. Anailton a encara. Ela finge não perceber. Ele sofre.

Em casa, depois do expediente no escritório de contabilidade, não vê a hora de dormir, acordar, engolir pão e beber leite com chocolate, caminhar até o ponto cheio, esperar calado pelo ônibus, sentar-se na fila direita, aguardar ansiosamente e sentir a pulsação aumentar ao ver a musa passar a roleta.

Dois meses depois Anailton marca um gol. Ônibus atrasa e lota rapidamente. A moça, com pasta e bolsa nas mãos, posta-se de pé ao lado do rapaz, que com inédita confiança se oferece para carregar seus pertences. Ela aceita e agradece sorrindo. Mais tarde sorri e agradece novamente, pega pasta, bolsa e salta no centro da cidade, dois pontos antes de Anailton.

Agora os dois são colegas. Quando a lotação do coletivo permite, sentam-se juntos. Então conversam, ela para gastar o tempo durante a viagem trivial e ele com a nobre missão de conhecê-la e conquistá-la. Anailton descobre que a moça é secretária, estuda à noite, vai à missa aos domingos, gosta de praia, hambúrguer, novela das oito, sorvete de acerola e bombom serenata, ama bombom serenata. Bombom serenata, sorvete de acerola, dedos finos e alvos sem anéis, olhos castanhos, lábios nus, 21 anos. Ele não consegue parar de pensar nisso.

De manhã cedo, faz o desjejum como sempre e coloca cinco bombons serenata, embrulhados em pacote enfeitado, na velha pasta nike comprada no camelô. Vestindo uma camisa gola pólo vermelha, a melhor do guarda-roupa modesto, segue seu destino, embriagado de amor. Encarna o toureiro certo da vitória na arena, o piloto do melhor monoposto que larga com lugar garantido no pódio. A musa entra. Cumprimentam-se mas não compartilham a poltrona. Sem problema: a intenção é abordá-la na saída do trabalho, enquanto a moça espera a condução para ir à faculdade.

Adailton pediu ao chefe para sair 20 minutos mais cedo, mas as pilhas de documentos só lhe deram 10. Corre em meio à multidão para encontrá-la. Confia na previsibilidade do dia-a-dia. Chega ao ponto de ônibus, crachá ainda no peito, e vê sua paixão dividindo sorvete com um rapaz alto e bem vestido. Ainda tem esperança de que sejam apenas amigos quando um beijo caloroso aniquila qualquer dúvida. Sem chão para pisar, sem sangue nas veias, atravessa a rua mecanicamente para fugir da cena que o fere.

O motorista da Kombi branca não consegue frear a tempo.




12:37 AM
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