domingo, abril 11, 2004
QUADRADO AO QUADRADO
por João do Papel
Ele era tão certinho que procurou não viver a própria vida, com medo de incomodar os vizinhos. Era de uma normalidade sobrenatural, assustadora, infalível. Tinha aproximadamente quatrocentas palavras no vocabulário, todas de raízes comuns, geométricas. Quadrado, bola, sorvete, cachorro, cobrar, pagar. Foi o mais conformado dentre os covardes, e não teve ninguém que chorasse no dia de seu enterro, apesar do sol e do vento agradável.
Desde muito molecote trouxe na cabeça a vontade de agradar a todas as pessoas e o medo de acentuar palavras com mais de três sílabas. Tinha pavor do ônibus que tomava para casa, porque o último motorista dirigia sem a carteira do tipo necessário para veículos pesados. Não podia crer no desprendimento daquele homem. Se isso era possível, o que não seria? Sinceramente, era incapaz de perceber as nuances entre ter e não ter uma carteira do tipo certo. Não acreditava que uma pessoa sem carteira pudesse dirigir; tivesse a capacidade. Simplesmente achava que o motor não ligaria, que o carro não funcionaria. Se acontecesse, repare no grifo, se acontecesse de alguém sem carteira sentar na cadeira do motorista com pensamento de rodar com o carro, a mão divina da Providência interromperia o ato. Ele ainda hoje duvida que o homem não tinha habilitação para o ônibus. Preferiu acreditar que aquele não era um veículo pesado, mas um carro do tipo conciliável com a carteira do ex-motorista.
Enfim, era tão absolutamente preto-no-branco que transcendia o bom senso. Por exemplo, toda vez que chegava perto de um CD player tocando no modo "random" ou "shuffle", a ordem das músicas trocava da aleatória para a normal. Uma coisa impossível, todo mundo sabe. Ao invés de misturar, embaralhar, pegar faixas aleatórias, o sistema computadorizado do CD player tocava as faixas na ordem original, estabelecida, impressa na fibra. Esse truque assustava as pessoas. Assustou a mim diversas vezes. Outras coisas aconteceram, mas não cabe aqui recontar. Tranqulizem, vou remeter a pauta ao Fantástico. Fiquem ligados que um dia ele aparecerá, um homem do Rá que não é falcatrua. É tão certinho que parece personagem de piada; aquele carcereiro que tinha certeza absoluta na volta do prisioneiro, que foi à padaria comprar cigarro, porque emprestou a ele uma nota grande e tem troco. É por aí.
por João do Papel
Ele era tão certinho que procurou não viver a própria vida, com medo de incomodar os vizinhos. Era de uma normalidade sobrenatural, assustadora, infalível. Tinha aproximadamente quatrocentas palavras no vocabulário, todas de raízes comuns, geométricas. Quadrado, bola, sorvete, cachorro, cobrar, pagar. Foi o mais conformado dentre os covardes, e não teve ninguém que chorasse no dia de seu enterro, apesar do sol e do vento agradável.
Desde muito molecote trouxe na cabeça a vontade de agradar a todas as pessoas e o medo de acentuar palavras com mais de três sílabas. Tinha pavor do ônibus que tomava para casa, porque o último motorista dirigia sem a carteira do tipo necessário para veículos pesados. Não podia crer no desprendimento daquele homem. Se isso era possível, o que não seria? Sinceramente, era incapaz de perceber as nuances entre ter e não ter uma carteira do tipo certo. Não acreditava que uma pessoa sem carteira pudesse dirigir; tivesse a capacidade. Simplesmente achava que o motor não ligaria, que o carro não funcionaria. Se acontecesse, repare no grifo, se acontecesse de alguém sem carteira sentar na cadeira do motorista com pensamento de rodar com o carro, a mão divina da Providência interromperia o ato. Ele ainda hoje duvida que o homem não tinha habilitação para o ônibus. Preferiu acreditar que aquele não era um veículo pesado, mas um carro do tipo conciliável com a carteira do ex-motorista.
Enfim, era tão absolutamente preto-no-branco que transcendia o bom senso. Por exemplo, toda vez que chegava perto de um CD player tocando no modo "random" ou "shuffle", a ordem das músicas trocava da aleatória para a normal. Uma coisa impossível, todo mundo sabe. Ao invés de misturar, embaralhar, pegar faixas aleatórias, o sistema computadorizado do CD player tocava as faixas na ordem original, estabelecida, impressa na fibra. Esse truque assustava as pessoas. Assustou a mim diversas vezes. Outras coisas aconteceram, mas não cabe aqui recontar. Tranqulizem, vou remeter a pauta ao Fantástico. Fiquem ligados que um dia ele aparecerá, um homem do Rá que não é falcatrua. É tão certinho que parece personagem de piada; aquele carcereiro que tinha certeza absoluta na volta do prisioneiro, que foi à padaria comprar cigarro, porque emprestou a ele uma nota grande e tem troco. É por aí.
4:21 AM