quarta-feira, abril 07, 2004
OS AMIGOS
por João do Papel
Marcaram de se encontrar no mesmo lugar das últimas noites, um clube de sinuca meio ralé. A palavra clube tem um bom hálito. Então é exagero falar em clube de sinuca, uma vez que o bar é quente e fedorento.
Abrão prometeu levar alguns discos da coleção da avó, velharias de capa desfiada. Mas o neguinho desfez o sorriso quando percebeu que os Sinatras não tocariam no moderno aparelho de som do lugar. Aquietou-se e passou a noite abraçado aos vinis, com receio de perdê-los. Sentia culpa porque um era autografado -- na década de 40 a velha fizera uma viagem aos Estados Unidos; tentaria a vida na América mas a guerra a fez voltar. Até hoje se desconsola com a idéia de que um dia viu o homem cantar, majestoso segurando o fio do microfone na mão esquerda, o chapéu de aba mole escorregando pela careca galopante aos vinte e poucos anos. A dedicatória do disco era bonitinha, "melhores desejos" como fazia quando conhecia pouco a fã. Mas assinou o nome de outra pessoa: Francis A. Sinatra. Quem é essa mulher, essa tal de Francis, sorria e perguntava a velha.
Outro dia os amigos brigaram com um representante de distribuidora de cerveja por uma conta de duas fichas. Era uma espelunca maravilhosa, um lugar onde os bons corações prosperam, porque brigaram em desvantagem -- três contra um -- e saíram inteiros, um milagre da diplomacia. Voltaram para casa andando, mas diminuidos de todas as economias.
Há, porém, questões mais urgentes. A noite que Abrão grudou nos discos do Sinata, um cachorro passou mordendo as sarnas, enquanto um gato pelado usava de graça nos movimentos para desviar de cusparadas. As paredes descascadas serviam de campo de batalha para lagartixas, mosquitos e pequenas baratas; um teatro de operações que definia espíritos. Na parte de trás, os negros mal-encarados torciam pelas lagartixas, grandes e cautelosas. Estavam loucos para arrumar confusão e degustar à pancadas o santinho que ousasse invadir seu espaço, como elas. Circulando, os bêbados tristes e sem turma; mendigavam dedos de prosa, guimbas de cigarro e doses de cana -- os mosquitos. Ao redor da mesa estavam os jogadores de sinuca. Os amigos e os aproveitadores. Esses eu não sei quem era. Mas era assim o bar. Um equilíbrio inusitado, a síntese do lugar. Fórmula testada através de anos, heróicos anos de humilhações e atos heróicos, "sangue, suor e cerveja" na voz do sambista.
por João do Papel
Marcaram de se encontrar no mesmo lugar das últimas noites, um clube de sinuca meio ralé. A palavra clube tem um bom hálito. Então é exagero falar em clube de sinuca, uma vez que o bar é quente e fedorento.
Abrão prometeu levar alguns discos da coleção da avó, velharias de capa desfiada. Mas o neguinho desfez o sorriso quando percebeu que os Sinatras não tocariam no moderno aparelho de som do lugar. Aquietou-se e passou a noite abraçado aos vinis, com receio de perdê-los. Sentia culpa porque um era autografado -- na década de 40 a velha fizera uma viagem aos Estados Unidos; tentaria a vida na América mas a guerra a fez voltar. Até hoje se desconsola com a idéia de que um dia viu o homem cantar, majestoso segurando o fio do microfone na mão esquerda, o chapéu de aba mole escorregando pela careca galopante aos vinte e poucos anos. A dedicatória do disco era bonitinha, "melhores desejos" como fazia quando conhecia pouco a fã. Mas assinou o nome de outra pessoa: Francis A. Sinatra. Quem é essa mulher, essa tal de Francis, sorria e perguntava a velha.
Outro dia os amigos brigaram com um representante de distribuidora de cerveja por uma conta de duas fichas. Era uma espelunca maravilhosa, um lugar onde os bons corações prosperam, porque brigaram em desvantagem -- três contra um -- e saíram inteiros, um milagre da diplomacia. Voltaram para casa andando, mas diminuidos de todas as economias.
Há, porém, questões mais urgentes. A noite que Abrão grudou nos discos do Sinata, um cachorro passou mordendo as sarnas, enquanto um gato pelado usava de graça nos movimentos para desviar de cusparadas. As paredes descascadas serviam de campo de batalha para lagartixas, mosquitos e pequenas baratas; um teatro de operações que definia espíritos. Na parte de trás, os negros mal-encarados torciam pelas lagartixas, grandes e cautelosas. Estavam loucos para arrumar confusão e degustar à pancadas o santinho que ousasse invadir seu espaço, como elas. Circulando, os bêbados tristes e sem turma; mendigavam dedos de prosa, guimbas de cigarro e doses de cana -- os mosquitos. Ao redor da mesa estavam os jogadores de sinuca. Os amigos e os aproveitadores. Esses eu não sei quem era. Mas era assim o bar. Um equilíbrio inusitado, a síntese do lugar. Fórmula testada através de anos, heróicos anos de humilhações e atos heróicos, "sangue, suor e cerveja" na voz do sambista.
12:20 AM