sábado, abril 03, 2004

O CARRO DE MEU PAI
por João do Papel


Ir para casa e dirigir o carro de meu pai é como refazer a leitura de um livro querido, da adolescência talvez, no volume original. O livro está em más condições, bem consumido. Mas é um bom livro, e dá aquela mesma sensação do primeiro encontro, a maravilhosa hesitação do aprendizado.

Abro a porta com um macete e assumo a direção. Olho o interior. Este carro é um improviso sobre o chassi. Não há a mais vaga impressão de conforto. Com o incessante virar das folhinhas de mulher pelada (meu pai é mecânico), a direção ficou áspera, o câmbio folgou, e o freio agora tem o mau costume de preferir certa roda em prejuízo da outra.

Um motorista desavisado corre sério risco de pane seca ou de levar multa, porque os ponteiros e luzinhas do painel estão caducos. Mas meu pai não liga. Ele conhece o carro. Não precisa de ajuda para saber a diferença entre soluço e engasgo. Entende no carro aquilo que gostaria de ter entendido em muitas mulheres.

Pois me ocorre que meu pai é um artesão. Não só conserta, mas também cria peças e encaixes em sua bancada suja de graxa. Tem orgulho de, no início da década de 1980, ter adaptado alguns carburadores de Passat em Belina, a fim de melhorar o rendimento da perua.

Ele é muito engenhoso, mas analógico. Sente saudades do carburador, o som do combustível sugado pelo bom e velho carburador (vê nesta peça a justeza de um menino que encontra um caldo-de-cana depois de jogar bola o dia todo). Chips, as pequenas pestes desalmadas. Esses automóveis controlados por chips estão mais mansos para o motorista, mas ficaram impossíveis para os auto-didatas como meu pai.

Pergunto se o advento do sincronizado também não matou os mecânicos acostumados ao câmbio seco. Ele desconversa, não foi bem assim meu filho, o câmbio seco é parecido com o sincronizado meu filho, porque nesse caso é tudo de verdade -- ele agita as mãos, desenha no ar as peças e seu movimento -- é tudo de verdade, eu consigo pegar, eu entendo. Apenas sorrio e concordo com a cabeça.

Um dia, ao estudar o remendo certo para determinado escapamento, precisou acalmar o cliente que morria de pressa: "como ensinou o filósofo", disse meu pai, "dê-me uma alavanca e um ponto de apoio e moverei o mundo". Um comentário levemente cínico e muito bem colocado. Falou isso e enlaçou o cano de descarga com um arame, e prendeu tudo na barra que sustenta a carroceria. "Olha aqui", imagino que ele tenha pensado de si para si, "eu sou um mecânico de bairro, mas sou um artesão. Pode não ser o conserto da autorizada, mas tem alma". É uma citação lapidar, o lance genial de um micro-empresário mais artista que burguês.

Volto ao encontro que tive com o carro de meu pai. Estou dirigindo o primogênito dos Saveiros; tão velho que divide as vezes do motor 1.500 com o Fusca. Eu acelero, porque o barulho é bom. Um motor célebre, uma voz conhecida. Como tenho orgulho desse Saveiro velho. É um dos melhores amigos do meu pai -- é o carro do meu pai. O carro que agora tenho a honra de guiar.


1:21 AM
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