sábado, abril 10, 2004

MOCASSIM MANCHADO DE VERMELHO
por Adalberto Silva

Ele está perturbado. Passou a manhã inteira sentado em frente ao computador. Finge trabalhar. Seus óculos de armação dourada refletem uma planilha de excell. A tensão é tanta que ele nem consegue se distrair na internet, como os indolentes do escritório.

“Hoje eu acabo com a vagabunda”, pensa, enquanto batuca o mouse pad, olhos fixos no monitor.

Hora do almoço. Ele ainda conserva a aparência perfeita do começo do expediente. Nem o mais perspicaz dos detetives de cinema veria o amargor escondido naquele homem de camisa verde-clara, calça grafite, aristocrática pasta de couro e sapato mocassim meio gasto, a destoar da elegância corporativa do conjunto.

Sai do escritório discretamente, como de costume. Mas hoje ele não vai comer o frango grelhado com arroz branco no restaurante de sempre, sozinho, como faz diariamente há três anos. Não vai tomar uma coca-cola, pagar a conta sem olhar para a atendente e depois ir ao banco, ou ao barbeiro, ou à livraria do shopping folhear manuais de administração. Quebrará a rotina, sacrificará a segurança de um horário de almoço previsível por um acerto de contas conjugal.

No carro, lembra do começo do namoro, nos tempos da faculdade. Amor retilíneo, sossegado, estável como os índices da caderneta de poupança, nascido entre calculadoras hp, rodízios de pizza e sessões de cinemão americano. Consolidado pela entrada do casal no programa de trainee, ele na financeira e ela na siderúrgica, pela troca da pizza por carpaccio, da bic pela mont-blanc. Lembra dos planos a dois: a viagem a Cancun, o MBA, o escritório de consultoria.

“Cadela!”, deixa escapar, enquanto acelera, com a prudência típica dos analistas de crédito, o motor 1.0 do automóvel francês.

Ele sabe que ela sempre almoça em casa. Não gosta da comida servida na empresa. Acha indigesta.

Dirige cautelosamente, sem arestas, buzinas, distrações. Parece um autômato. Ou um personagem de propaganda de banco. Na pasta, acomodada no bando do passageiro, as provas do adultério e o revólver calibre 38 registrado.

Um amigo alertou, há quase um ano. Ele não acreditou, rompeu com o amigo. Indignado, o amigo tratou de provar a verdade. Nem foi difícil. Bastou freqüentar a boate com câmera digital. Enquadrava fulana, fulano, um casal qualquer e pegava, ao fundo, ela e o outro. Mandou as provas por e-mail e pôde dormir em paz.

O carro pára em frente ao prédio. Conhecido do porteiro, ele entra sem avisar. Pega o elevador e aperta o três. Sobe e dá de cara com os dois, sorridentes.

“Cheguei na hora, cadela”.

A arma na mão. O cano preto e robusto de seis polegadas contrasta com os braços finos e transparentes do algoz. Ele puxa o gatilho uma vez, ela é atingida no pescoço e cai na poça vermelha. Aponta para o outro, que assustado não se move.

“É bem mais jovem e bonito que nas fotos. Um molecote”, reflete, antes de esvaziar o tambor.

Ele caminha devagar, na mão esquerda a pasta importada, na direita o revólver ainda fumegante. Orgulhoso dos seis primeiros disparos de sua vida, não percebe que pisou no sangue da ex-amada. Os mocassins manchados de vermelho deixam pegadas no chão de granito.

Os vizinhos abrem as portas em pânico. Ela definha, sente sede e frio. O primo já morto. O rapaz, coitado, foi deixar um currículo com a prima e ganhou cinco balaços. E o matador nem headhunter era.


10:14 PM
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