terça-feira, março 30, 2004
O SEGUNDO TIME
por João do Papel
A história é simples. Chico Bento vem vindo da escola com a cabeça baixa, traz nas mãos um papel que parece desconfotável. É a última prova de matemática, zerada. Se fizer mal a recuperação, leva bomba e perde a andada da turma. (Sua classe é a mesma desde a década de 60. Reprovam juntos ou o universo das histórias em quadrinhos está congelado no tempo, os garotos não crescem, não mudam de voz, as meninas não ganham formas sinuosas para infernizar a vida dos garotos...) A mãe, terapeuta de primeira, diz que conhece uma simpatia. De acordo com a crença, basta escrever dez vezes em folhas diferentes a lição, levar até uma encruzilhada e atear fogo repetindo a palavra mágica (como faz 15 anos que li, asseguro que posso estar enganado na recontagem dos fatos). Depois de virar a noite fazendo tal serviço, Chico está confiante. Corre tudo bem e, no final, o menino sai da escola dando cambalhotas, porque é um 10 que tem em mãos.
Fim? Agora que fica bom de verdade. A "câmera" se afasta daquele Chico Bento que dá cambalhotas e revela um garoto, no ambiente urbano de uma sala de estar, segurando a revistinha do Chico Bento. Na verdade, o que acabamos de ler não é uma história do Chico Bento, mas a história de um menino lendo uma historinha do Chico Bento. Entendeu?
O garoto da cidade tem o mesmo problema do herói -- zerou uma prova e está em risco de perder a companhia dos amigos. A seqüência natural é ele repetir a simpatia, buscando resultado parecido -- a cambalhota, o 10 salvador. Pois bem. Apanha a lição, leva até uma casa de fotocópias, tira dez delas e, num cruzamento movimentado, provoca estranhamento ao queimar o material xerocado. Vai para a escola, faz o teste. Apreensão. Resutado inverso: o guri de apartamento não repete o êxito de Chico Bento. Tira um zero mais redondo que o primeiro.
Essa historinha me ensinou mais das sutilezas da arte que qualquer outra leitura. Paulo Francis disse que para ele foi Crime e Castigo. Outros podem citar Shakespeare, Stendhal, gênios inquestionáveis, mas fico mesmo com o redator da Maurício de Souza Produções, roteirista se preferir, que escreveu esse texto sensível e delicado, para uma daquelas historinhas ingnificantes que vêm depois da primeira, com desenhistas de segunda, arte-finalistas de segunda, enfim -- o texto que mais mexeu comigo até hoje foi uma obra de segundo escalão. Além de tudo é uma coisa bem brasileira, isso de o segundo time ter momentos mais brilhantes que o primeiro.
por João do Papel
A história é simples. Chico Bento vem vindo da escola com a cabeça baixa, traz nas mãos um papel que parece desconfotável. É a última prova de matemática, zerada. Se fizer mal a recuperação, leva bomba e perde a andada da turma. (Sua classe é a mesma desde a década de 60. Reprovam juntos ou o universo das histórias em quadrinhos está congelado no tempo, os garotos não crescem, não mudam de voz, as meninas não ganham formas sinuosas para infernizar a vida dos garotos...) A mãe, terapeuta de primeira, diz que conhece uma simpatia. De acordo com a crença, basta escrever dez vezes em folhas diferentes a lição, levar até uma encruzilhada e atear fogo repetindo a palavra mágica (como faz 15 anos que li, asseguro que posso estar enganado na recontagem dos fatos). Depois de virar a noite fazendo tal serviço, Chico está confiante. Corre tudo bem e, no final, o menino sai da escola dando cambalhotas, porque é um 10 que tem em mãos.
Fim? Agora que fica bom de verdade. A "câmera" se afasta daquele Chico Bento que dá cambalhotas e revela um garoto, no ambiente urbano de uma sala de estar, segurando a revistinha do Chico Bento. Na verdade, o que acabamos de ler não é uma história do Chico Bento, mas a história de um menino lendo uma historinha do Chico Bento. Entendeu?
O garoto da cidade tem o mesmo problema do herói -- zerou uma prova e está em risco de perder a companhia dos amigos. A seqüência natural é ele repetir a simpatia, buscando resultado parecido -- a cambalhota, o 10 salvador. Pois bem. Apanha a lição, leva até uma casa de fotocópias, tira dez delas e, num cruzamento movimentado, provoca estranhamento ao queimar o material xerocado. Vai para a escola, faz o teste. Apreensão. Resutado inverso: o guri de apartamento não repete o êxito de Chico Bento. Tira um zero mais redondo que o primeiro.
Essa historinha me ensinou mais das sutilezas da arte que qualquer outra leitura. Paulo Francis disse que para ele foi Crime e Castigo. Outros podem citar Shakespeare, Stendhal, gênios inquestionáveis, mas fico mesmo com o redator da Maurício de Souza Produções, roteirista se preferir, que escreveu esse texto sensível e delicado, para uma daquelas historinhas ingnificantes que vêm depois da primeira, com desenhistas de segunda, arte-finalistas de segunda, enfim -- o texto que mais mexeu comigo até hoje foi uma obra de segundo escalão. Além de tudo é uma coisa bem brasileira, isso de o segundo time ter momentos mais brilhantes que o primeiro.
9:59 PM