segunda-feira, março 29, 2004

O MEDO DO ARTILHEIRO DIANTE DO PÊNALTI
por Adalberto Silva

O jogo daquela quarta-feira calorenta era decisivo para o nosso herói. Só uma vitória livraria o seu time da terceira divisão do campeonato brasileiro. Uma vitória simples, jogando em casa contra uma equipe do interior gaúcho que cumpria tabela, cansada depois da viagem de ônibus e desfalcada do principal jogador.

Pena que nosso herói, artilheiro do time, está espiritualmente distante do jogo. Sente medo, sente raiva, tem vontade de tirar o uniforme e fugir do estádio.

Ainda assim ele entra em campo. Sem fogos, sem crianças de mãos dadas, recepcionado por uns 10 torcedores e uma débil batucada. Toca com as mãos a grama ressequida, arranca um pequeno ramo e coloca-o entre a caneleira e a meia da perna direita. É pra dar sorte.

O artilheiro olha para a torcida, um bando de velhos bêbados e desocupados, e sente asco. Repudia a obrigação de dar alegria a uns sujeitos entupidos de cerveja, que só estão ali por não agüentarem suas esposas rabugentas. Ele queria mais. Sonhava, como seus colegas, jogar em clube grande e quem sabe chegar à seleção. Agora, aos 29 anos, não tem mais ambições. Só pensa em fazer um gol, livrar o time do rebaixamento, dirigir o carro modesto até a casa e dormir.

Começa o jogo. O herói, disperso, se aproveita da condição de centroavante e some do jogo, das disputas de bola, das arrancadas. Prefere pensar nas expectativas dos pais, irmãos, cunhados, vorazes por um quinhão do dinheiro e da fama que ele poderia conquistar. Lembra-se do churrasco oferecido por um tio sovina quando foi convidado para jogar nos juniores do Vasco da Gama. E do desprezo quando foi dispensado, meses depois.

Nosso herói está frustrado por não ter sido o herói da sua família. Sente a alma doer, doer mais que o joelho esfolado pelo campo esturricado. Penalidade máxima.

Ele se levanta e prepara a cobrança. Olha para o goleiro, um grandalhão loiro, toma distância e treme. Nem passa pela sua cabeça que o goleiro é tão miserável quanto ele e também calça chuteiras da temporada passada. O herói, aflito, não vê gol, arquibancada vazia, adversários ou companheiros de equipe. Só vê o olhar esperançoso da mãe, sempre certa de que no próximo contrato do filho ganhará a casa dos sonhos, grande e com piscina. A velha humilde e meiga ainda está lá quando o juiz autoriza a cobrança do penal.

A bola, no canto oposto do goleiro, sobe e bate no alambrado. Zero a zero é o placar final. Nosso herói ainda ouve alguém chamá-lo de filho da puta, antes de desabar aos prantos no vestiário.


11:59 PM
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