domingo, março 21, 2004
NERUDA NA JANELA
por João do Papel
Que efeito formidável teve em minha viagem de ônibus até em casa a leitura de "Pelas Praias do Mundo", livro de Pablo Neruda em prosa -- estilo que o próprio execrava, mas dizia que "tem-se de fazer". O primeiro texto do volume é mais hermético que o necessário, e não sei até que ponto vítima de uma tradução porca. As frases são organizadas como uma enfestação de formigas, rivais, porque brigam num esquema caótico, violento, rugem como ondas fortes terminando em rochas e a poesia desaparece no ar como a água do mar pulverizada. Não me ficou retido nada da primeira experiência com Neruda.
Mas esse foi o texto inaugural, um estudo -- canhoto, a meu ver -- sobre a poesia andina, tão desconhecida minha quanto a culinária geodésia. Virei a página a tempo de ver Neruda revoltar-se contra o primeiro texto e entregar duas ótimas crônicas extraídas de sua auto-biografia, "Confesso que vivi". Sua descrição da cidade de Valparaíso, a epopéia gráfica que resulta, a densidade do relato e a leveza das imagens, o frescor do estilo, valem o livro (que aliás é emprestado, e não volverá a casa muito cedo).
Da janela do ônibus, voltando para meu povoado da infância, a poesia de Pablo alinhou-se como rebocador à minha saudade transatlântica e guiou meu sentimento pela tarde ensolarada, o astro-rei estático no céu, brilhando com gosto. O sol parado no ar e o verde das pastagens que eram pardas em minha memória, viçosas das chuvas deste verão de cântaros.
Chuva que caiu coesa como um discurso de Ruy Barbosa, batendo suas gotas na cidade cansada e pobre. Só restou acompanhar a apresentação do jazz de Afonso Abreu, sobrinho do Urso, o maior cronista de Cachoeiro de todos os tempos, Rubem Braga.
por João do Papel
Que efeito formidável teve em minha viagem de ônibus até em casa a leitura de "Pelas Praias do Mundo", livro de Pablo Neruda em prosa -- estilo que o próprio execrava, mas dizia que "tem-se de fazer". O primeiro texto do volume é mais hermético que o necessário, e não sei até que ponto vítima de uma tradução porca. As frases são organizadas como uma enfestação de formigas, rivais, porque brigam num esquema caótico, violento, rugem como ondas fortes terminando em rochas e a poesia desaparece no ar como a água do mar pulverizada. Não me ficou retido nada da primeira experiência com Neruda.
Mas esse foi o texto inaugural, um estudo -- canhoto, a meu ver -- sobre a poesia andina, tão desconhecida minha quanto a culinária geodésia. Virei a página a tempo de ver Neruda revoltar-se contra o primeiro texto e entregar duas ótimas crônicas extraídas de sua auto-biografia, "Confesso que vivi". Sua descrição da cidade de Valparaíso, a epopéia gráfica que resulta, a densidade do relato e a leveza das imagens, o frescor do estilo, valem o livro (que aliás é emprestado, e não volverá a casa muito cedo).
Da janela do ônibus, voltando para meu povoado da infância, a poesia de Pablo alinhou-se como rebocador à minha saudade transatlântica e guiou meu sentimento pela tarde ensolarada, o astro-rei estático no céu, brilhando com gosto. O sol parado no ar e o verde das pastagens que eram pardas em minha memória, viçosas das chuvas deste verão de cântaros.
Chuva que caiu coesa como um discurso de Ruy Barbosa, batendo suas gotas na cidade cansada e pobre. Só restou acompanhar a apresentação do jazz de Afonso Abreu, sobrinho do Urso, o maior cronista de Cachoeiro de todos os tempos, Rubem Braga.
2:44 PM